No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

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13 de fevereiro de 2024
Ana Lucia Coradazzi

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Berê

“A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace”. (Victor Hugo)

    A Berê* tem pouco mais de sessenta anos. No corpo. Porque sua alma é certamente mais velha, talvez já conte alguns milênios. Com os anos acumulados de clínica, tendo visto tantas reações e olhares, ouvido tantas palavras e silêncios, vem ficando fácil para mim enxergar a longevidade de uma existência. Há um brilho diferente, uma faísca fugidia, um mistério delicado, uma sutileza nas palavras. Há sabedoria de vida por debaixo da pele, e luminosidade por trás dos olhos. Almas milenares são reconhecíveis pelo que provocam em nós. Um desconforto inexplicável, um encantamento doce. A Berê é assim. Eu soube desde que nos conhecemos, alguns anos atrás, por conta do seu diagnóstico de câncer de intestino.

    Ela não tinha nada demais. Uma mulher simples, de baixa estatura, os cabelos curtos um tanto mal cuidados, os dentes amarelados pelos muitos anos de tabagismo. Eu não me lembro das roupas que ela vestia, mas provavelmente uma camiseta bem larga e confortável estava presente, sua marca registrada até hoje. Ela vinha depois de algumas semanas da cirurgia intestinal, já quase recuperada. Confessou estar um tanto ressabiada com a necessidade de quimioterapia, a ideia não lhe agradava muito não. Mas, como aconteceu muitas vezes nos anos que se seguiram, conversa-vai-conversa-vem, nós entramos num acordo, e a quimioterapia começou. A Berê sofreu um pouco com o tratamento. As palmas das mãos e as plantas dos pés estavam tão finas que quase era possível enxergar através delas, e a fadiga também não foi algo lá muito confortável. Mas ela foi se utilizando da melhor estratégia já descoberta até hoje para lidar com situações difíceis: um dia de cada vez. O último dia de quimioterapia chegou, e a Berê sorria de uma orelha à outra. Disse que comemoraria com uma pinguinha das boas, que a ocasião merecia. Gargalhadas, abraços e piadas tomaram conta do consultório, naquele e em muitos outros dias depois.

    Passaram-se alguns meses. Estávamos tão próximas que eu já tinha ganhado um apelido: era a Pretinha dela. Ela se divertia com a confusão no rosto das enfermeiras quando perguntava pela Pretinha (para constar: sou loira de olhos claros, branca que nem bicho de goiaba, de pretas tenho só minhas pupilas). E assim ela trazia às consultas a alegria de estar de bem com a sua própria vida. Mas, como a vida gosta de nos surpreender, um dia a má notícia chegou: uma metástase no fígado. Expliquei com cuidado o que isso significava, e vi pela primeira vez em seus olhos a serenidade infinita que os habitava. Berê sorriu, me garantiu que não era o fim do mundo, e que existe coisa muito pior nessa vida. Sua alma de milênios transbordou pelo seu olhar, e a minha alma adolescente a abraçou de volta.

    O combinado era simples: faríamos algumas sessões de quimioterapia, repetiríamos a tomografia e, se o resultado fosse favorável, partiríamos para uma cirurgia no fígado. Tudo certo, tratamento iniciado, sem surpresas. A tomografia mostrou uma melhora impressionante na lesão hepática e a cirurgia estava sendo programada. Mas a vida, como a própria Berê já tinha entendido, não é muito afeita à calmaria. Poucas semanas antes do procedimento, um acidente de carro gravíssimo matou o genro dela, e deixou sua filha e sua netinha, de pouco mais de um ano, em estado gravíssimo. Foram dias inimagináveis para a Berê. Uma sombra escondia o que costumava ser só luz, vi muitas lágrimas turvando seus olhos. Mas a serenidade estava lá, irredutível. E eu soube que ela encontraria um jeito de passar por tanta dor.

    Para a Berê não fazia sentido prosseguir com nossos planos. Submeter-se a uma cirurgia grande, enquanto filha e neta estavam vivendo os dias mais dramáticos de suas vidas, seria uma insanidade. Mesmo a continuidade da quimioterapia lhe era secundária naquele momento. Adaptamos o tratamento, flexibilizamos as consultas, e as semanas foram esculpindo os sentimentos da Berê, tornando sua vida um pouco mais possível. Foram muitas semanas. De angústia, de medo, de insegurança, de dor. A filha, vítima de fraturas graves nas pernas, precisou de várias cirurgias e muita fisioterapia para conseguir voltar a andar. A netinha tinha ficado com sequelas neurológicas sérias, e não era capaz de respirar sem o auxílio de um ventilador. Difícil imaginar uma situação mais triste. Mas a Berê guardava em si a capacidade de agradecer pelo que tinha, mesmo que fosse tão pouco. Trazia vídeos da neta mexendo os olhinhos ou sorrindo, um rostinho que inspirava alívio, sem a agonia dos que sofrem. Para a Berê isso bastava para continuar sua vida. Estava em paz.

    Foi quase um ano de internação até que a netinha da Berê fosse para casa. Um esquema de cuidados foi montado, muita gente ajudou. Ela era grata por cada doação, de coisas, alimentos, tempo. Mas ela sabia que o tempo da neta estava acabando. Sentia sob sua pele. Um dia, mostrando algumas fotos da menina, ela cometeu um ato falho: “Olha, doutora, como ela era linda.” Era. No passado. Eu percebi o lapso, ela não. E, como a Berê já previa sem saber, duas semanas depois o tempo verbal tornou-se correto: sua menina faleceu em casa, tranquila, em meio a um abraço apertado da mãe. Quando a Berê me contou, só uma lágrima lhe correu o rosto. Uma só. Não por falta de tristeza, mas por não lhe faltar amor. O amor que respeita a vida quando ela precisa acabar. O amor em sua versão mais profunda. Era assim que sua alma milenar enxergava o mundo, e a si mesma.

    Quase dois anos se passaram desde o fatídico acidente. Foram muitos os percalços, e também foram muitas as negociações entre nós. Descartamos a ideia da cirurgia, mas a quimioterapia continua. Desde que não atrapalhe muito sua vida, desde que de vez em quando ela tenha algumas semanas de folga, desde que eu não insista mais na cessação do tabagismo, desde que que ela possa tomar a pinguinha sagrada do final de semana. Desde que eu esteja sempre ao seu lado. É precisamente este último acordo que me liga a ela de forma tão doce: eu a ajudo a atravessar as tempestades, e ela me ensina como fazer isso com sabedoria.

    Foram muitos passos juntas até aqui. A simplicidade dela, nos gestos, nas palavras (e nos muitos palavrões), amadurecem minha alma. Eu a observo quando está vindo pelo corredor, sorridente e falando mais alto do que o necessário, os chinelos de dedo, a camiseta dois números maior, e enxergo uma mulher gigante se aproximando. Assim como é gigante o abraço com que sempre nos despedimos, esperando fervorosamente que sempre tenhamos um próximo encontro. Quando chegar o dia em que esse encontro não acontecer – porque ou eu ou ela tivemos que desocupar o corpo que hoje nos acolhe -, saberemos onde encontrar uma à outra. Nos lugares onde o corpo não alcança, as almas chegam com a maior facilidade.

*nome fictício (assim como alguns dados da história) para preservar a identidade da paciente

17 de abril de 2023
Ana Lucia Coradazzi

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Quando ela foi embora

Ela suspirou treze vezes. Isso foi antes dela morrer, dez minutos depois. Foram dois os suspiros que me comoveram. O primeiro e o último. No primeiro, ela moveu três vezes a boca, espasmodicamente, sem forças. Por duas vezes achei que ela não ia morrer de verdade, mas ela morreu, e foi de uma vez. 

Lembrei das oito viagens que fizemos juntas. Oito não, foram dez. Dez não, foram infinitas. Quando fomos a um show e ela pediu três sacos de pipoca, só para garantir. Quando fomos beber juntas e perdemos a conta das caipirinhas, mas tenho para mim que foram nove. Mas podem ter sido catorze. Ou dezesseis. Quem vai saber? Lembro dos dez dedos das suas mãos, cinco para cada lado do seu corpo, agora imóvel, agora sem vida. Vida ela só tinha uma, mas valia por trezentas e vinte e duas. Ela era muitas em apenas um corpo.  

Olhei de novo seu peito, duas inspirações ainda vi. Três mechas de cabelo caíam pela testa, tirei duas delas. A terceira deixei, porque ela gostava de um pouco de desordem. Eram quatro horas da tarde. Tinham sido quatro horas ali ao seu lado. Troquei mais de seis toalhas. Os lençóis, acho que foram três, ou talvez quatro. Meio que tanto faz. Ela nunca ligou para isso.

Seis anéis nos dedos das mãos, porque ela adorava aqueles anéis e não pude tirá-los dali. E veio o último dos treze suspiros. E então ela se foi.


Texto compilado durante a Prática de Escrita Meditativa, com Marília Librandi, em 04/2023.

Imagem: Ophelia, de John Everett Millaiss

18 de janeiro de 2022
Ana Lucia Coradazzi

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Por que sermos apenas maus, se podemos ser cruéis?

Já tinham se passado várias semanas desde a primeira vez em que Bernardo tinha entrado em contato com a minha secretária para agendar uma consulta para seu primo, Sandro, que tinha sido recém-diagnosticado com um câncer de pâncreas. Infelizmente, na época eu não tinha como atendê-los devido a compromissos que engarrafaram minha agenda, e agora ele tinha entrado em contato novamente para marcar uma conversa comigo. Era realmente uma conversa, já que o paciente não compareceria à consulta e já estava em tratamento sob os cuidados com outro colega. Bernardo chegou acompanhado de Léo, irmão de Sandro, e também de muitas angústias.

Eu mal lhes perguntei no que poderia ajudá-los, e Bernardo já começou a se desculpar por me procurar somente agora, tantas semanas depois do início do tratamento do primo. Com certo constrangimento – e até nervosismo – na voz, ele explicou que logo após o diagnóstico tinham tentado marcar a consulta, mas julgaram que o caso era urgente e não poderiam aguardar os quinze dias sugeridos pela minha secretária. Descreveu como estavam assustados e inseguros na época, e como tinha sido conturbada a decisão de procurar outro colega para iniciar o tratamento o mais brevemente possível. Conforme Bernardo ia falando, Léo completava seu discurso, ambos visivelmente desconfortáveis e até hesitantes. Após alguns minutos dessa fala titubeante, entendi que seria necessário intervir. Com um sorriso, tranquilizei os dois dizendo que não via nenhum problema em buscar uma segunda opinião, que de forma alguma me sentiria preterida e que minha intenção ali era ajudá-los no que fosse possível. Minhas palavras simples foram suficientes para que o turbilhão de angústias que os afligia se esparramasse sobre a mesa, vigoroso e irrefreável. As comportas tinham sido abertas.

Sandro era jovem, com cerca de 40 anos e com um filho pequeno, e nada em sua vida indicava que pudesse ter que enfrentar uma doença grave como o câncer. Os sintomas tinham se iniciado meses antes, com algum desconforto após se alimentar, mas que nem ao menos justificou sua ida ao médico. Numa consulta rotineira por outro motivo, foi solicitada uma tomografia do abdome, e lá estava a lesão no pâncreas, acompanhada de metástases no fígado e do comprometimento de vários linfonodos. Em alguns dias uma biopsia já tinha confirmado a natureza maligna do tumor, e o cirurgião tinha contra-indicado a retirada do tumor explicando que se tratava de uma doença metastática, que não poderia ser curada com procedimentos cirúrgicos. O diagnóstico tinha deixado Sandro – e toda a família – atordoados. Foi em meio a esse estado de incertezas e dúvidas que foram orientados a procurar um oncologista clínico para avaliar a possibilidade de quimioterapia, que ajudaria a controlar a doença. E foi com essa esperança que compareceram à consulta do colega que vinha acompanhando Sandro desde então.

Eles não tinham nenhum relatório sobre o tratamento em mãos, apenas o resultado da biopsia e dos exames de imagem, obtidos com certa dificuldade no hospital. O relatório médico tinha sido solicitado duas semanas antes para que pudessem trazer na consulta, mas aparentemente o colega não tinha tido tempo de redigi-lo. Preocupados em fornecer todas as informações que pudessem na consulta, conseguiram de uma enfermeira um papel onde constavam as drogas que vinham sendo utilizadas, e as datas dos três ciclos de quimioterapia já administrados. Trouxeram também os resultados do marcador tumoral, o CA 19.9, que se mostrava muito elevado mesmo após o início do tratamento, mas que recentemente iniciara uma discreta queda. Fiz algumas perguntas sobre a tolerância dele ao tratamento, sintomas clínicos, e analisei com calma todos os exames que me trouxeram. Do ponto de vista médico, nada ali me chamava a atenção. O esquema de tratamento era o indicado, a queda do CA 19.9 indicava uma possível resposta à quimioterapia, e Sandro aparentemente não estava apresentando toxicidade significativa com o tratamento. Expliquei tudo isso a eles, reforçando que eu não teria feito nada diferente, e que eles poderiam ficar tranquilos quanto ao tratamento que vinha sendo feito. Os dois pareceram mais relaxados, mais seguros. Mesmo assim, a sensação de desconforto, de que algo ali estava errado, continuava a me perturbar. Perguntei o que era.

Bernardo e Léo se olharam antes de me responder. Mais uma vez se desculpando antecipadamente pela resposta, explicaram que não tinham a intenção de ser antiéticos ou mesmo ingratos, mas que as angústias deles estavam mais associadas ao relacionamento deles com o médico do que com o tratamento em si. Sabiam que o esquema de quimioterapia estava correto – tinham conversado com um médico amigo da família, tinham buscado na internet e até trocado alguns e-mails com um oncologista renomado em São Paulo. Também sabiam o que significava a queda do CA 19.9. O que os preocupava era o cuidado e a relação de confiança mútua que parecia ter morrido desde a primeira consulta com o oncologista. Falaram da postura distante e um tanto desatenta do médico. Do exame físico sumário. Das interrupções contínuas enquanto tentavam falar. Principalmente, falaram das frases ouvidas do médico nesse dia, que lhes arrancaram do peito a esperança. “Espero que você tenha seguro de vida, cara, porque sua mulher vai precisar.” “Se você tem filho, acho melhor passar mais tempo com ele, porque não vai durar muito.” E, fechando com chave de ouro, já no final da consulta, com um sorriso pretensamente simpático no rosto e um tapinha amigável nas costas de Sandro: “Amigo, você tá fu…”

Eu não consegui esconder meu espanto diante do relato dos dois. A dor em seus olhos, a mágoa, a sensação de impotência misturada com indignação, o medo, a culpa, tudo foi arremessado ali diante de mim naquele instante. Eu não sabia o que dizer. Bernardo completou o relato descrevendo a conversa que teve com Sandro no duro caminho de volta para casa, durante o qual ambos choravam ininterruptamente, e Sandro só dizia que não valia a pena fazer tratamento algum. Daqueles minutos no carro, Bernardo se lembrava da agonia de tentar conter o estrago, injetando um pouco de esperança no primo, garantindo – sem ter qualquer garantia – que não era bem assim, que precisavam se acalmar para decidir as coisas com mais serenidade. Ele relembrava dos socos que sentia por dentro do próprio peito, como se o coração estivesse prestes a saltar. Depois de alguns segundos em silêncio, perguntei como tinham sido as consultas seguintes. Um pouco aliviados, os dois disseram que não tinham sido tão ruins, mas que havia algo de sádico na relação com o colega. “Sádico?”, perguntei, já esperando o pior. Sim, sádico. Mesmo quando havia alguma boa notícia, o médico fazia questão de anulá-la com alguma colocação sombria. Foi assim quando chegaram animados com a boa tolerância de Sandro à quimioterapia, sem náuseas, vômitos ou qualquer outro sintoma importante, e ouviram do médico que isso não significava nada, que não ter efeitos coletarais com o tratamento não era garantia de bons resultados. Também foi assim quando a discreta queda da CA 19.9 foi detectada, e a explicação do colega foi de que não deveriam se animar porque em níveis tão elevados uma queda tão pequena não significava nada, apenas que tinha “muito câncer naquele corpo”. E a crueldade em geral alcançava seu auge ao término das consultas, quando alguma brincadeira macabra costumava fechar o encontro: “Boa sorte, você vai precisar!”, ou “Espero ainda te ver no retorno!”. Sádico, sem dúvida alguma. E inacreditável também.

Não é incomum que as relações entre médicos e pacientes sejam distantes, pouco empáticas ou insatisfatórias (para ambas as partes). Em Oncologia, onde uma doença grave está na mesa e onde muito sofrimento pode estar presente, muitos colegas evitam o envolvimento com a dor do outro num ato de proteção a si mesmos. Em outros casos, sua pouca habilidade em comunicar más notícias pode afastá-los de seus pacientes, preenchendo as consultas com termos técnicos e de significado duvidoso para evitar a clareza desconfortável da verdade. Há até quem sofra de um certo excesso de empatia, que paralisa o médico em sua tarefa de informar seus pacientes porque isso poderia fazê-los sofrer. Tudo isso é indesejável, mas é compreensível. Não temos uma formação profissional que favoreça relacionamentos saudáveis e empáticos com nossos pacientes. Na verdade, é exatamente o contrário: somos compelidos a voltar nossa atenção para doenças e seus respectivos tratamentos, deixando as humanidades devidamente escondidas sob o tapete. Não somos estimulados a ler nada que não sejam livros técnicos, nem a consumir filmes que nos relembrem da nossa condição de humanos, ou mesmo a procurar nossa própria essência (leia-se praticar o autocuidado, por exemplo). Somos parabenizados pela produtividade, acurácia e quantidade de conhecimento, mas não pelas relações que somos capazes de construir com as pessoas. Tudo isso é fato, e precisa ser transformado (já está sendo, aliás, e como isso é bom!). Mas o que ouvi da família agoniada de Sandro não foi fruto de despreparo, e sim da ausência completa do significado de ser médico. Não existe, em qualquer livro, aula, discussão acadêmica ou outros meios de ensino, alguma menção a sermos cruéis. A crueldade vem do regozijo com o sofrimento do outro, e a medicina vem do prazer em aliviar esse sofrimento. A mera coexistência das palavras medicina e crueldade na mesma frase já causa estranheza, mas identificá-las numa mesma pessoa é inaceitável e assustador.

Eu sei. Sei que é difícil. Sei que o equilíbrio entre comunicar uma notícia desalentadora e manter a esperança é algo desafiador e exaustivo. Sei que dói, sei que causa desconforto (sinto isso sob a pele todos os dias). Mas ainda assim precisamos fazê-lo, e usar nossa compaixão para ajudar as pessoas a seguir em frente mesmo assim, da forma como acharem mais significativa. Temos ferramentas para isso, se estivermos dispostos a buscá-las. Podemos aprender a nos comunicar melhor. Podemos encher nossas vidas de humanidades (a arte, a natureza e as relações humanas estão ao nosso redor o tempo todo). Mesmo que não busquemos essa lapidação na nossa prática, dificilmente isso acarretará atitudes cruéis. Na pior das hipóteses, talvez sejamos piores do que poderíamos para nossos pacientes. Talvez até sejamos maus profissionais, que seja. Mas a crueldade nada tem a ver com falta de formação ou com perfil profissional. Ela é uma psicopatia, e psicopatas são assustadores justamente por sua condição emocional pouco humana. Ironicamente (ou tragicamente), psicopatas comumente buscam as situações que favorecem seu sadismo, e lidar com pacientes em grande sofrimento pode ser um prato cheio para isso. Infelizmente, Sandro não foi a primeira vítima da crueldade médica, e nem será a última. Já vi e ouvi histórias suficientes para entender que a crueldade é mais comum do que imaginamos entre profissionais da saúde, sejam médicos, enfermeiros, psicólogos ou quaisquer outros. O que me dói mais ao ouvir essas histórias nem é a constatação desse enorme desvio de personalidade entre os profissionais, e sim a aceitação resignada disso por pacientes, familiares e pelos próprios colegas de profissão. Alguns encaram a situação até com certo estoicismo, como se esse acréscimo de dor fizesse parte do desafio. Não faz. Isso não é aceitável. Isso não é nem mesmo perdoável.

Entre os muitos ensinamentos que aprendi praticando a oncologia e os cuidados paliativos, uma frase sempre me vem à mente quando meus ouvidos são machucados com histórias como essa. Eu nem ao menos sei quem a escreveu, mas certamente o(a) autor(a) a proferiu num momento muito parecido com o que experimentei ali, olhando para Bernardo e Léo, ruminando sobre o que se passa na cabeça de um médico que vê no sofrimento alheio um terreno fértil para satisfazer seus próprios desejos mórbidos. “Se a dor do outro não te afeta, quem precisa de ajuda é você.”

3 de outubro de 2021
Ana Lucia Coradazzi

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E que os anjos digam amém

Uma bênção logo na primeira consulta. E em todas as consultas que se seguiram depois. Era assim que nossas conversas terminavam: as mãos dele sobre minha cabeça, ele de olhos fechados por alguns segundos, murmurando as palavras abençoadas que trariam coisas boas para minha vida. Eu, com as mãos cruzadas na frente do corpo, fechava os olhos e sorria, esperando que ele terminasse. Ele então devolvia o sorriso e saía, seguido da esposa, que pegava minhas mãos e, quase sempre emocionada, se despedia também. Esse era nosso ritual durante os meses em que cuidei do S. Mariano. Foram meses difíceis do ponto de vista oncológico, com muitos desafios relacionados ao tratamento e os efeitos colaterais atrelados a ele. Mas, se as demandas técnicas eram muitas, eu não podia dizer o mesmo das demandas emocionais. S. Mariano e D. Cilene traziam uma paz dentro de si que, para mim, era um sopro de alívio no meio de tantas consultas complicadas. As mãos dele sobre a minha cabeça eram apenas o presságio de uma bênção ainda maior: a de tê-los comigo durante parte da minha vida.

S. Mariano já tinha 80 anos quando recebeu o diagnóstico de câncer no reto, já com metástases no fígado. Era um idoso saudável até então, ativo, animado, independente. Embora soubéssemos que a doença seria um grande desafio, ele não titubeou por um momento sequer. Ia para a quimioterapia como quem vai a uma reunião com amigos. Fez amizade com as enfermeiras, com os radioterapeutas, com as recepcionistas. Tinha essa maravilhosa mania de deixar um rastro de alegria por onde passava. Não, isso não é um exagero: alegria devia ser seu primeiro nome. Mesmo quando não tínhamos boas notícias, S. Mariano sorria, e então dizia algo como: “Doutora, se Deus quer que meu caminho seja esse, que eu possa caminhar feliz por entre as pedras.” E foram muitas pedras. Tivemos que lidar com alguns efeitos adversos bem chatos da quimioterapia, como a diarreia, a fraqueza e a falta de apetite. A cirurgia também não foi fácil, com uma infecção no pós-operatório e a dificuldade de cicatrização. Mas quando eu perguntava se ele achava que estava valendo a pena, a resposta era imediata: “Lógico que está!” (e sim, a resposta era seguida de uma bênção ainda mais fervorosa sobre mim).

Depois de um ano de tantas pedras sendo retiradas do caminho, a doença resolveu assumir o controle. As lesões do fígado aumentaram rapidamente, o abdome começou a se mostrar inchado, e logo entendemos que o tempo estava ficando escasso. Ele começou a ficar mais fraco, o andar mais inseguro e, apesar do sorriso que não lhe abandonava o rosto, eu podia sentir que sua energia estava indo embora. Eu olhava para ele e meu coração se entristecia. Não que ele estivesse em sofrimento ou desespero, porque essas coisas não chegaram a fazer parte da vida dele, nem mesmo no final. Me entristecia a ideia de não tê-lo mais abençoando meus dias com suas palavras, seu olhar e suas mãos carinhosas. Eu queria que ele ficasse, mas precisava deixá-lo partir quando fosse a hora. Era o meu coração brigando consigo mesmo. Algumas vezes eu ficava imaginando como seria difícil esse momento. Muitas vezes ele tinha me dito que não estava no mundo para ser um fardo para os outros, que estava aqui para ser luz. Agora eu ficava pensando em como seria quando o câncer o subjugasse, tornando-o tão fraco que ele não poderia tomar conta de si mesmo sozinho. Ou quando o intestino ficasse obstruído a ponto de precisarmos interná-lo e discutir a necessidade de sonda e outras pequenas torturas que às vezes precisamos impor aos nossos pacientes, em nome de aliviar um sofrimento ainda maior causado pela doença. Pensava em como seria vê-lo internado em seus últimos dias, talvez confuso, talvez com indicação de ser sedado, sendo o “fardo” que ele não desejava ser. Secretamente, enquanto eu recebia uma de suas últimas bênçãos, pedi que a bênção voltasse para ele. E assim foi.

Dois dias antes de sua partida, numa sexta-feira à noite, recebi uma mensagem da nora, explicando que estava preocupada porque o abdome estava mais inchado e ele parecia muito fraco. Ela me mandou a foto, e era fácil perceber o líquido se acumulando por toda a barriga. Mas na mesma foto eu podia ver o rosto dele, abatido mas tranquilo. Orientei as medicações e, como ele mesmo pediu, combinamos que eu iria vê-lo no consultório na segunda. Não deu. No domingo, depois de uma tarde tranquila, registrada num video em que ele dá risada de um amigo que lhe aperta os peitos como uma buzina, S. Mariano subitamente piorou e foi levado às pressas ao Pronto-Socorro, falecendo pouco tempo depois. Nada de internações prolongadas, sondas, dependência, agonia. A última frase dele, para a nora, foi “Não se preocupe, Pretinha, eu não estou sentindo nenhuma dor.” Ele foi embora assim, como se os anjos tivessem vindo em missão especial para buscá-lo.

Hoje, pouco mais de um mês da despedida dele, eu me pego procurando seu nome na agenda de pacientes do dia, como eu fazia enquanto ele estava entre nós. Vê-lo na agenda me enchia de alegria. Significava que meu dia não seria tão difícil assim ou, se fosse, ficaria tudo bem. A serenidade dele e a generosidade traduzida pela sua fé tinham um poder maior sobre mim do que ele poderia imaginar (e do que eu mesma poderia). Ele buscava minha ajuda, mas quem recebia auxílio era eu. Hoje ele não está mais aqui, mas está. Por duas vezes, depois de consultas particularmente difíceis, pude sentir suas mãos sobre mim. Numa delas, quase pude ouví-lo sussurrando: “Deus abençoe seu trabalho, menina.” Chorei ao contar isso para minha secretária, que me confessou tê-lo por perto também, até hoje: ela, como eu, recebia bênçãos e sorrisos sem moderação. S. Mariano tinha toda razão. Ele veio para ser luz, e luz a gente leva para onde quer que haja escuridão. Esteja em paz, querido. Que os anjos digam amém.