No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

5 de março de 2019
Ana Lucia Coradazzi

6 comments

A dor que vive por trás da dor

Anésia* tem 60 anos e trabalha como faxineira desde a adolescência. Há pouco mais de um ano tinha recebido o diagnóstico de um câncer de mama inicial, cujo tratamento indicado tinha sido a combinação de cirurgia, radioterapia e hormonioterapia. Ela vinha se adaptando muito bem à medicação e aquele já era seu quarto retorno comigo. Desde a primeira consulta, Anésia me dava a impressão de ser uma mulher forte. Trabalhava muito e quase sem descanso, e com o fruto desse trabalho conseguira criar a filha, hoje com 32 anos e formada professora. O esposo tinha falecido há quase uma década, depois de um longo tempo acamado por consequência de um acidente vascular cerebral grave. Anésia era, sem dúvida, uma dessa mulheres cuja resiliência e coragem inspiram as pessoas ao seu redor.

Mas, naquele dia, ela estava diferente. Já na entrada do consultório percebi o sorriso mais contido, quase que por obrigação. Ela se sentou na ponta da cadeira, os joelhos colados um ao outro, as mãos entrelaçadas entre as coxas. Perguntei como estava, se vinha sentindo alguma coisa diferente.

– Continuo com aquela dor nas costas de sempre, doutora, mas está bem pior há uns dois meses. Os ombros também doem, está difícil até pra trabalhar.

Estranhei. Anésia tinha uma artrose importante na coluna e nos ombros, resultante do trabalho como faxineira, e estava muito acostumada com essas dores. Tão acostumada que nunca chegava a reclamar delas, apenas citava sua existência. Meu cérebro de oncologista imediatamente pensou no pior: podem ser metástases nos ossos… Perguntei se ela já tinha consultado algum outro médico por causa da piora das dores. Anésia tinha ido a dois ortopedistas e um neurocirurgião. Tinha feito radiografias, uma cintilografia óssea e uma ressonância magnética. Os três colegas diagnosticaram artrose severa. Um deles prescreveu anti-inflamatórios, com pouca melhora. Outro indicou uma cirurgia nos joelhos, pois segundo ele sua postura estava prejudicando a coluna. O terceiro indicou a colocação de hastes em sua coluna que minimizariam a dor. Vi todos os exames. Estavam idênticos aos exames feitos pouco mais de um ano antes, na época do diagnóstico do câncer. Mas o alívio por descartar a possibilidade de metástases logo passou. A sensação de que alguma coisa estava errada continuava a me incomodar.

– Anésia, aconteceu alguma coisa diferente nesses últimos meses? Algum acidente? Algum outro problema sério? Você parece mais tensa, mais triste.

Minha pergunta pareceu abrir as comportas de uma represa. Anésia começou a chorar imediatamente. Eu me sentei ao lado dela e a ouvi contar, entre lágrimas e alguns soluços, sobre a morte súbita do irmão, ocorrida há pouco mais de dois meses. Ela era muito próxima a ele, considerando-o seu melhor amigo. Embora o irmão já estivesse doente há alguns anos, com uma insuficiência cardíaca grave e complicações do diabetes, o choque de saber que ele tinha sido encaminhado às pressas para a UTI tinha sido demais para Anésia. Ela tinha ficado tão nervosa que não conseguira ir ao hospital, decidindo esperar para vê-lo quando já estivesse no quarto. Mas ele nunca saiu da UTI. Dois dias depois da internação, seu irmão evoluíra a óbito, sem ninguém da família por perto. Com a morte dele, Dona Inácia, mãe de Anésia, tinha ido morar com ela, o que mudara drasticamente sua vida. Dona Inácia tinha insuficiência renal crônica e precisava fazer hemodiálise três vezes por semana, o que significava que Anésia perderia três dias de trabalho para acompanhá-la. Mesmo nos outros dias, o número de tarefas que passaram a ser de responsabilidade dela tinha aumentado tanto que seus dias pareciam ter apenas poucas horas. E Anésia se torturava. Por não estar ao lado do irmão em seu leito de morte. Por ficar irritada com a mãe e com toda a sobrecarga que viera junto com ela. Por se sentir tão fragilizada e incapaz. As dores na coluna só vinham aumentar seu sofrimento. Não conseguia dormir à noite, mesmo morta de cansada, e não tinha mais apetite, o que levou à perda de 4 quilos. Ela não mais reconhecia a si mesma.

Olhei para ela, meu coração cheio de compaixão. Agora Anésia fazia sentido para mim. Ela estava de luto, e um mundo vinha esmagando seus ombros. Imaginei suas noites em claro, sua imensa solidão, as saudades do irmão e confidente. Imaginei as contas a pagar se acumulando na mesa, e a irritação com o despertador tocando bem cedo para levar a mãe ao hospital. Anésia continuava sendo a mesma mulher forte e resistente de sempre, mas tinha encontrado seus limites. As dores na coluna eram apenas o reflexo da dor na sua alma.

Há um bom tempo aprendi que a dor da alma não pode ser aliviada com medicamentos, muito menos com cirurgias. Ela precisa de tempo e de apoio. Precisa de compreensão e de paciência. E, claro, de ouvidos disponíveis. Um diagnóstico difícil para os médicos, mas bem fácil para qualquer ser humano que se permita entrar em contato com o outro. Respirei fundo e dei um grande abraço nela. Pensei no quanto nós, médicos do corpo, somos pouco capazes para lidar com as dores da alma. Quantas medicações, procedimentos, cirurgias e exames são prescritos por nós, com a melhor das intenções, mas totalmente ineficazes e até prejudiciais… Anésia não precisava de um médico. Ela precisava de carinho. No meio de toda aquela dor borbulhando pelos seus olhos, eu só conseguia lhe dizer: “Vai passar.”

Contei para Anésia o que eu sabia sobre o luto, sobre as diversas formas de lidarmos com ele, sobre o quanto pedir ajuda é importante. Conversamos sobre o quanto a vida pode ser difícil às vezes, mas que ainda assim valia a pena. Indiquei uma colega psicóloga com larga experiência com o luto, prescrevi uma medicação que ajudaria na dor e no sono. Pedi ainda a ajuda da assistente social e agendei um retorno bem mais próximo que o habitual. No final da consulta, nós duas já de pé, próximas à porta, um outro abraço apertado, dessa vez sem lágrimas, e com um grande suspiro de alívio (de nós duas). Anésia repetiu minhas palavras, agora já sorrindo um pouco: “Vai passar.”

Depois que ela saiu, precisei de alguns minutos para me recompor. Nesses momentos sempre penso na grandiosidade dos psicólogos e assistentes sociais, e na quantidade de sofrimento que eles presenciam e ajudam a conduzir. É doloroso expor-se ao sofrimento alheio, e é quase divino conseguir ajudar a aliviar o sofrimento sem tomá-lo para si, como os bons profissionais fazem. A mim, médica, cabe diagnosticar o sofrer que não é do corpo para que minhas mãos não façam bobagens. Cabe a mim reconhecer os meus limites e conduzir o paciente a quem possa ajudá-lo mais que eu. E, acima de tudo, me cabe cultivar a imensa gratidão pelo aprendizado com cada uma dessas pessoas, que me permitem entender o quanto minha própria vida é abençoada.

*nome fictício para preservar a paciente

 

6 comentários sobre “A dor que vive por trás da dor

  1. Que emoção contida nesse relato!!! Parabéns!!! Todos precisam de um abraço e colo na hora da dor da alma!!!
    Benditas mãos que se compadecem e ajudam!!! Vai passar!!!

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  2. D.Anésia vai passar….
    Ainda bem que tudo passa

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  3. Quanto eu aprendo com suas palavras… Muito obrigada!

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  4. Obg por nos presentear com essas narrativas… muita profundidade e muita disponibilidade para “estar com” o outro.

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  5. Como é maravilhoso quando alguém nos. escuta e nos compreende!

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