Karina chegou pela primeira vez ao consultório acompanhada do marido, Cláudio, e dos seus inseparáveis sapatos de salto alto. Perto dos 50 anos, ela tinha no olhar o brilho das garotas de 20 e a serenidade das mulheres de 60. Veio para conversarmos sobre o câncer da mama, mas a conversa foi muito além. Falamos dos filhos (as minhas e os dela), da campanha de vacinação contra a covid-19, de vinhos, da praia. Gostei dela desde os primeiros minutos, e conforme a conhecia melhor meu carinho por ela só aumentava. Karina era tranquila e determinada ao mesmo tempo. Não gostava de rodeios, não gostava de meias palavras. Cláudio, sempre com ela, era mais cerimonioso e cheio de dedos. Escolhia as palavras com cuidado e frequentemente se mantinha em silêncio. Era assim que eles pareciam funcionar: ela assertiva e resiliente, ele emocional e cauteloso.
O tratamento foi iniciado, e com ele vieram as perdas. Os cabelos, longos e bem cuidados, deram lugar a um couro cabeludo lisinho. Os cílios caíram. Ela perdeu peso. Sentia-se cansada e sem apetite. Abandonou os saltos altos (“Pelo menos por enquanto”) e a maquiagem impecável, adotando só um protetor solar e máscara para os cílios. Mas Karina continuava tranquila. A cada perda, ela via um ganho. Comprou um lenço para cada dia da semana, para variar o visual. Usava óculos escuros, que a deixavam com ares de atriz de cinema. As sapatilhas confortáveis logo ganharam seu apreço, e os quilos a menos eram considerados mais que bem vindos por ela. Até que foi Cláudio que saiu da sua vida.
Quando ela me contou do divórcio, a separação já tinha acontecido há mais de um mês. Com a voz serena e do seu jeito assertivo de sempre, Karina me contou da noite em que, após o jantar, ele se sentou ao lado dela e disse que para ele o fardo era pesado demais. Contou como ele se mostrou constrangido ao assumir que não suportava vê-la daquele jeito, e que não podia imaginar como seria quando a cirurgia da mama fosse feita. Cláudio chorou e pediu perdão a ela, disse que era um covarde mesmo, e que ela não merecia um covarde ao seu lado. Disse que há semanas vinha se torturando com a imagem da futura cirurgia, que passava um longo tempo na internet pesquisando sobre isso, e que cada vez mais se sentia aterrorizado. Karina ouviu tudo em silêncio. A uma certa altura da conversa, se levantou e pegou um copo de água para ele. Depois de um silêncio que lhe pareceu durar horas, perguntou o que ele pretendia fazer, e o ouviu descrever seus planos de se mudar para a casa de um amigo provisoriamente, e conversar com o advogado deles sobre os trâmites legais do divórcio. Mais um silêncio, e só uma lágrima escorreu dos olhos dela. Era isso. Fim.
Eu ouvia Karina falar com meu coração aos pulos. Uma mistura de tristeza, revolta, compaixão, e sabe-se lá mais que sentimento invadiu a minha alma. Se Cláudio estivesse na sala de espera, acho que eu teria ido até ele para deixar claro o tamanho da sua falta de caráter. Mas algo no olhar dela me fez interromper o turbilhão de emoções. Um olhar tranquilo, cheio de paz, até feliz. Perguntei como ela estava se sentindo.
– Livre, doutora. Não nasci para ser fonte de sofrimento para ninguém. Eu sou alegria, sou coragem, sou gratidão, sou cheia de planos. Não tem espaço para lamentos na minha vida.
Eu olhava para ela e sentia essa alegria, essa coragem, essa gratidão que vinham nas suas palavras. Perguntei se não tinha sentido mágoa ou dor em nenhum momento. Doeu. Uma dor aguda e rápida, como arrancar um esparadrapo, e que às vezes ainda voltava. Já mágoa, essa não. A mágoa, disse ela, só aparece quando a gente permite. Simples assim. Karina disse que entendia a vida como uma sucessão de ciclos. Um ciclo precisa se encerrar para que outro se inicie. O corpo é assim, a vida é assim, e os nossos relacionamentos também.
Antes de ir embora, me sorriu com toda a sua alma. Não tinha sinais de mágoa por ali. Na verdade, acho até que vi alívio, talvez compaixão pelo (agora ex) marido e pelas inúmeras pessoas que se perdem pela vida, incapazes de enxergar beleza quando a beleza está oculta. Por aqueles de nós que insistem em reformar o que não precisa de reforma, porque já está perfeito do jeito que está. Por aqueles que se deixam encantar pela perfeição, sem se dar conta de que o encanto está na ausência dela. O sorriso dela era por todos nós, quando permitimos que o mundo seja do jeito que é, e não do jeito que o vemos.