Já tinham se passado várias semanas desde a primeira vez em que Bernardo tinha entrado em contato com a minha secretária para agendar uma consulta para seu primo, Sandro, que tinha sido recém-diagnosticado com um câncer de pâncreas. Infelizmente, na época eu não tinha como atendê-los devido a compromissos que engarrafaram minha agenda, e agora ele tinha entrado em contato novamente para marcar uma conversa comigo. Era realmente uma conversa, já que o paciente não compareceria à consulta e já estava em tratamento sob os cuidados com outro colega. Bernardo chegou acompanhado de Léo, irmão de Sandro, e também de muitas angústias.
Eu mal lhes perguntei no que poderia ajudá-los, e Bernardo já começou a se desculpar por me procurar somente agora, tantas semanas depois do início do tratamento do primo. Com certo constrangimento – e até nervosismo – na voz, ele explicou que logo após o diagnóstico tinham tentado marcar a consulta, mas julgaram que o caso era urgente e não poderiam aguardar os quinze dias sugeridos pela minha secretária. Descreveu como estavam assustados e inseguros na época, e como tinha sido conturbada a decisão de procurar outro colega para iniciar o tratamento o mais brevemente possível. Conforme Bernardo ia falando, Léo completava seu discurso, ambos visivelmente desconfortáveis e até hesitantes. Após alguns minutos dessa fala titubeante, entendi que seria necessário intervir. Com um sorriso, tranquilizei os dois dizendo que não via nenhum problema em buscar uma segunda opinião, que de forma alguma me sentiria preterida e que minha intenção ali era ajudá-los no que fosse possível. Minhas palavras simples foram suficientes para que o turbilhão de angústias que os afligia se esparramasse sobre a mesa, vigoroso e irrefreável. As comportas tinham sido abertas.
Sandro era jovem, com cerca de 40 anos e com um filho pequeno, e nada em sua vida indicava que pudesse ter que enfrentar uma doença grave como o câncer. Os sintomas tinham se iniciado meses antes, com algum desconforto após se alimentar, mas que nem ao menos justificou sua ida ao médico. Numa consulta rotineira por outro motivo, foi solicitada uma tomografia do abdome, e lá estava a lesão no pâncreas, acompanhada de metástases no fígado e do comprometimento de vários linfonodos. Em alguns dias uma biopsia já tinha confirmado a natureza maligna do tumor, e o cirurgião tinha contra-indicado a retirada do tumor explicando que se tratava de uma doença metastática, que não poderia ser curada com procedimentos cirúrgicos. O diagnóstico tinha deixado Sandro – e toda a família – atordoados. Foi em meio a esse estado de incertezas e dúvidas que foram orientados a procurar um oncologista clínico para avaliar a possibilidade de quimioterapia, que ajudaria a controlar a doença. E foi com essa esperança que compareceram à consulta do colega que vinha acompanhando Sandro desde então.
Eles não tinham nenhum relatório sobre o tratamento em mãos, apenas o resultado da biopsia e dos exames de imagem, obtidos com certa dificuldade no hospital. O relatório médico tinha sido solicitado duas semanas antes para que pudessem trazer na consulta, mas aparentemente o colega não tinha tido tempo de redigi-lo. Preocupados em fornecer todas as informações que pudessem na consulta, conseguiram de uma enfermeira um papel onde constavam as drogas que vinham sendo utilizadas, e as datas dos três ciclos de quimioterapia já administrados. Trouxeram também os resultados do marcador tumoral, o CA 19.9, que se mostrava muito elevado mesmo após o início do tratamento, mas que recentemente iniciara uma discreta queda. Fiz algumas perguntas sobre a tolerância dele ao tratamento, sintomas clínicos, e analisei com calma todos os exames que me trouxeram. Do ponto de vista médico, nada ali me chamava a atenção. O esquema de tratamento era o indicado, a queda do CA 19.9 indicava uma possível resposta à quimioterapia, e Sandro aparentemente não estava apresentando toxicidade significativa com o tratamento. Expliquei tudo isso a eles, reforçando que eu não teria feito nada diferente, e que eles poderiam ficar tranquilos quanto ao tratamento que vinha sendo feito. Os dois pareceram mais relaxados, mais seguros. Mesmo assim, a sensação de desconforto, de que algo ali estava errado, continuava a me perturbar. Perguntei o que era.
Bernardo e Léo se olharam antes de me responder. Mais uma vez se desculpando antecipadamente pela resposta, explicaram que não tinham a intenção de ser antiéticos ou mesmo ingratos, mas que as angústias deles estavam mais associadas ao relacionamento deles com o médico do que com o tratamento em si. Sabiam que o esquema de quimioterapia estava correto – tinham conversado com um médico amigo da família, tinham buscado na internet e até trocado alguns e-mails com um oncologista renomado em São Paulo. Também sabiam o que significava a queda do CA 19.9. O que os preocupava era o cuidado e a relação de confiança mútua que parecia ter morrido desde a primeira consulta com o oncologista. Falaram da postura distante e um tanto desatenta do médico. Do exame físico sumário. Das interrupções contínuas enquanto tentavam falar. Principalmente, falaram das frases ouvidas do médico nesse dia, que lhes arrancaram do peito a esperança. “Espero que você tenha seguro de vida, cara, porque sua mulher vai precisar.” “Se você tem filho, acho melhor passar mais tempo com ele, porque não vai durar muito.” E, fechando com chave de ouro, já no final da consulta, com um sorriso pretensamente simpático no rosto e um tapinha amigável nas costas de Sandro: “Amigo, você tá fu…”
Eu não consegui esconder meu espanto diante do relato dos dois. A dor em seus olhos, a mágoa, a sensação de impotência misturada com indignação, o medo, a culpa, tudo foi arremessado ali diante de mim naquele instante. Eu não sabia o que dizer. Bernardo completou o relato descrevendo a conversa que teve com Sandro no duro caminho de volta para casa, durante o qual ambos choravam ininterruptamente, e Sandro só dizia que não valia a pena fazer tratamento algum. Daqueles minutos no carro, Bernardo se lembrava da agonia de tentar conter o estrago, injetando um pouco de esperança no primo, garantindo – sem ter qualquer garantia – que não era bem assim, que precisavam se acalmar para decidir as coisas com mais serenidade. Ele relembrava dos socos que sentia por dentro do próprio peito, como se o coração estivesse prestes a saltar. Depois de alguns segundos em silêncio, perguntei como tinham sido as consultas seguintes. Um pouco aliviados, os dois disseram que não tinham sido tão ruins, mas que havia algo de sádico na relação com o colega. “Sádico?”, perguntei, já esperando o pior. Sim, sádico. Mesmo quando havia alguma boa notícia, o médico fazia questão de anulá-la com alguma colocação sombria. Foi assim quando chegaram animados com a boa tolerância de Sandro à quimioterapia, sem náuseas, vômitos ou qualquer outro sintoma importante, e ouviram do médico que isso não significava nada, que não ter efeitos coletarais com o tratamento não era garantia de bons resultados. Também foi assim quando a discreta queda da CA 19.9 foi detectada, e a explicação do colega foi de que não deveriam se animar porque em níveis tão elevados uma queda tão pequena não significava nada, apenas que tinha “muito câncer naquele corpo”. E a crueldade em geral alcançava seu auge ao término das consultas, quando alguma brincadeira macabra costumava fechar o encontro: “Boa sorte, você vai precisar!”, ou “Espero ainda te ver no retorno!”. Sádico, sem dúvida alguma. E inacreditável também.
Não é incomum que as relações entre médicos e pacientes sejam distantes, pouco empáticas ou insatisfatórias (para ambas as partes). Em Oncologia, onde uma doença grave está na mesa e onde muito sofrimento pode estar presente, muitos colegas evitam o envolvimento com a dor do outro num ato de proteção a si mesmos. Em outros casos, sua pouca habilidade em comunicar más notícias pode afastá-los de seus pacientes, preenchendo as consultas com termos técnicos e de significado duvidoso para evitar a clareza desconfortável da verdade. Há até quem sofra de um certo excesso de empatia, que paralisa o médico em sua tarefa de informar seus pacientes porque isso poderia fazê-los sofrer. Tudo isso é indesejável, mas é compreensível. Não temos uma formação profissional que favoreça relacionamentos saudáveis e empáticos com nossos pacientes. Na verdade, é exatamente o contrário: somos compelidos a voltar nossa atenção para doenças e seus respectivos tratamentos, deixando as humanidades devidamente escondidas sob o tapete. Não somos estimulados a ler nada que não sejam livros técnicos, nem a consumir filmes que nos relembrem da nossa condição de humanos, ou mesmo a procurar nossa própria essência (leia-se praticar o autocuidado, por exemplo). Somos parabenizados pela produtividade, acurácia e quantidade de conhecimento, mas não pelas relações que somos capazes de construir com as pessoas. Tudo isso é fato, e precisa ser transformado (já está sendo, aliás, e como isso é bom!). Mas o que ouvi da família agoniada de Sandro não foi fruto de despreparo, e sim da ausência completa do significado de ser médico. Não existe, em qualquer livro, aula, discussão acadêmica ou outros meios de ensino, alguma menção a sermos cruéis. A crueldade vem do regozijo com o sofrimento do outro, e a medicina vem do prazer em aliviar esse sofrimento. A mera coexistência das palavras medicina e crueldade na mesma frase já causa estranheza, mas identificá-las numa mesma pessoa é inaceitável e assustador.
Eu sei. Sei que é difícil. Sei que o equilíbrio entre comunicar uma notícia desalentadora e manter a esperança é algo desafiador e exaustivo. Sei que dói, sei que causa desconforto (sinto isso sob a pele todos os dias). Mas ainda assim precisamos fazê-lo, e usar nossa compaixão para ajudar as pessoas a seguir em frente mesmo assim, da forma como acharem mais significativa. Temos ferramentas para isso, se estivermos dispostos a buscá-las. Podemos aprender a nos comunicar melhor. Podemos encher nossas vidas de humanidades (a arte, a natureza e as relações humanas estão ao nosso redor o tempo todo). Mesmo que não busquemos essa lapidação na nossa prática, dificilmente isso acarretará atitudes cruéis. Na pior das hipóteses, talvez sejamos piores do que poderíamos para nossos pacientes. Talvez até sejamos maus profissionais, que seja. Mas a crueldade nada tem a ver com falta de formação ou com perfil profissional. Ela é uma psicopatia, e psicopatas são assustadores justamente por sua condição emocional pouco humana. Ironicamente (ou tragicamente), psicopatas comumente buscam as situações que favorecem seu sadismo, e lidar com pacientes em grande sofrimento pode ser um prato cheio para isso. Infelizmente, Sandro não foi a primeira vítima da crueldade médica, e nem será a última. Já vi e ouvi histórias suficientes para entender que a crueldade é mais comum do que imaginamos entre profissionais da saúde, sejam médicos, enfermeiros, psicólogos ou quaisquer outros. O que me dói mais ao ouvir essas histórias nem é a constatação desse enorme desvio de personalidade entre os profissionais, e sim a aceitação resignada disso por pacientes, familiares e pelos próprios colegas de profissão. Alguns encaram a situação até com certo estoicismo, como se esse acréscimo de dor fizesse parte do desafio. Não faz. Isso não é aceitável. Isso não é nem mesmo perdoável.
Entre os muitos ensinamentos que aprendi praticando a oncologia e os cuidados paliativos, uma frase sempre me vem à mente quando meus ouvidos são machucados com histórias como essa. Eu nem ao menos sei quem a escreveu, mas certamente o(a) autor(a) a proferiu num momento muito parecido com o que experimentei ali, olhando para Bernardo e Léo, ruminando sobre o que se passa na cabeça de um médico que vê no sofrimento alheio um terreno fértil para satisfazer seus próprios desejos mórbidos. “Se a dor do outro não te afeta, quem precisa de ajuda é você.”