No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

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18 de janeiro de 2022
Ana Lucia Coradazzi

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Por que sermos apenas maus, se podemos ser cruéis?

Já tinham se passado várias semanas desde a primeira vez em que Bernardo tinha entrado em contato com a minha secretária para agendar uma consulta para seu primo, Sandro, que tinha sido recém-diagnosticado com um câncer de pâncreas. Infelizmente, na época eu não tinha como atendê-los devido a compromissos que engarrafaram minha agenda, e agora ele tinha entrado em contato novamente para marcar uma conversa comigo. Era realmente uma conversa, já que o paciente não compareceria à consulta e já estava em tratamento sob os cuidados com outro colega. Bernardo chegou acompanhado de Léo, irmão de Sandro, e também de muitas angústias.

Eu mal lhes perguntei no que poderia ajudá-los, e Bernardo já começou a se desculpar por me procurar somente agora, tantas semanas depois do início do tratamento do primo. Com certo constrangimento – e até nervosismo – na voz, ele explicou que logo após o diagnóstico tinham tentado marcar a consulta, mas julgaram que o caso era urgente e não poderiam aguardar os quinze dias sugeridos pela minha secretária. Descreveu como estavam assustados e inseguros na época, e como tinha sido conturbada a decisão de procurar outro colega para iniciar o tratamento o mais brevemente possível. Conforme Bernardo ia falando, Léo completava seu discurso, ambos visivelmente desconfortáveis e até hesitantes. Após alguns minutos dessa fala titubeante, entendi que seria necessário intervir. Com um sorriso, tranquilizei os dois dizendo que não via nenhum problema em buscar uma segunda opinião, que de forma alguma me sentiria preterida e que minha intenção ali era ajudá-los no que fosse possível. Minhas palavras simples foram suficientes para que o turbilhão de angústias que os afligia se esparramasse sobre a mesa, vigoroso e irrefreável. As comportas tinham sido abertas.

Sandro era jovem, com cerca de 40 anos e com um filho pequeno, e nada em sua vida indicava que pudesse ter que enfrentar uma doença grave como o câncer. Os sintomas tinham se iniciado meses antes, com algum desconforto após se alimentar, mas que nem ao menos justificou sua ida ao médico. Numa consulta rotineira por outro motivo, foi solicitada uma tomografia do abdome, e lá estava a lesão no pâncreas, acompanhada de metástases no fígado e do comprometimento de vários linfonodos. Em alguns dias uma biopsia já tinha confirmado a natureza maligna do tumor, e o cirurgião tinha contra-indicado a retirada do tumor explicando que se tratava de uma doença metastática, que não poderia ser curada com procedimentos cirúrgicos. O diagnóstico tinha deixado Sandro – e toda a família – atordoados. Foi em meio a esse estado de incertezas e dúvidas que foram orientados a procurar um oncologista clínico para avaliar a possibilidade de quimioterapia, que ajudaria a controlar a doença. E foi com essa esperança que compareceram à consulta do colega que vinha acompanhando Sandro desde então.

Eles não tinham nenhum relatório sobre o tratamento em mãos, apenas o resultado da biopsia e dos exames de imagem, obtidos com certa dificuldade no hospital. O relatório médico tinha sido solicitado duas semanas antes para que pudessem trazer na consulta, mas aparentemente o colega não tinha tido tempo de redigi-lo. Preocupados em fornecer todas as informações que pudessem na consulta, conseguiram de uma enfermeira um papel onde constavam as drogas que vinham sendo utilizadas, e as datas dos três ciclos de quimioterapia já administrados. Trouxeram também os resultados do marcador tumoral, o CA 19.9, que se mostrava muito elevado mesmo após o início do tratamento, mas que recentemente iniciara uma discreta queda. Fiz algumas perguntas sobre a tolerância dele ao tratamento, sintomas clínicos, e analisei com calma todos os exames que me trouxeram. Do ponto de vista médico, nada ali me chamava a atenção. O esquema de tratamento era o indicado, a queda do CA 19.9 indicava uma possível resposta à quimioterapia, e Sandro aparentemente não estava apresentando toxicidade significativa com o tratamento. Expliquei tudo isso a eles, reforçando que eu não teria feito nada diferente, e que eles poderiam ficar tranquilos quanto ao tratamento que vinha sendo feito. Os dois pareceram mais relaxados, mais seguros. Mesmo assim, a sensação de desconforto, de que algo ali estava errado, continuava a me perturbar. Perguntei o que era.

Bernardo e Léo se olharam antes de me responder. Mais uma vez se desculpando antecipadamente pela resposta, explicaram que não tinham a intenção de ser antiéticos ou mesmo ingratos, mas que as angústias deles estavam mais associadas ao relacionamento deles com o médico do que com o tratamento em si. Sabiam que o esquema de quimioterapia estava correto – tinham conversado com um médico amigo da família, tinham buscado na internet e até trocado alguns e-mails com um oncologista renomado em São Paulo. Também sabiam o que significava a queda do CA 19.9. O que os preocupava era o cuidado e a relação de confiança mútua que parecia ter morrido desde a primeira consulta com o oncologista. Falaram da postura distante e um tanto desatenta do médico. Do exame físico sumário. Das interrupções contínuas enquanto tentavam falar. Principalmente, falaram das frases ouvidas do médico nesse dia, que lhes arrancaram do peito a esperança. “Espero que você tenha seguro de vida, cara, porque sua mulher vai precisar.” “Se você tem filho, acho melhor passar mais tempo com ele, porque não vai durar muito.” E, fechando com chave de ouro, já no final da consulta, com um sorriso pretensamente simpático no rosto e um tapinha amigável nas costas de Sandro: “Amigo, você tá fu…”

Eu não consegui esconder meu espanto diante do relato dos dois. A dor em seus olhos, a mágoa, a sensação de impotência misturada com indignação, o medo, a culpa, tudo foi arremessado ali diante de mim naquele instante. Eu não sabia o que dizer. Bernardo completou o relato descrevendo a conversa que teve com Sandro no duro caminho de volta para casa, durante o qual ambos choravam ininterruptamente, e Sandro só dizia que não valia a pena fazer tratamento algum. Daqueles minutos no carro, Bernardo se lembrava da agonia de tentar conter o estrago, injetando um pouco de esperança no primo, garantindo – sem ter qualquer garantia – que não era bem assim, que precisavam se acalmar para decidir as coisas com mais serenidade. Ele relembrava dos socos que sentia por dentro do próprio peito, como se o coração estivesse prestes a saltar. Depois de alguns segundos em silêncio, perguntei como tinham sido as consultas seguintes. Um pouco aliviados, os dois disseram que não tinham sido tão ruins, mas que havia algo de sádico na relação com o colega. “Sádico?”, perguntei, já esperando o pior. Sim, sádico. Mesmo quando havia alguma boa notícia, o médico fazia questão de anulá-la com alguma colocação sombria. Foi assim quando chegaram animados com a boa tolerância de Sandro à quimioterapia, sem náuseas, vômitos ou qualquer outro sintoma importante, e ouviram do médico que isso não significava nada, que não ter efeitos coletarais com o tratamento não era garantia de bons resultados. Também foi assim quando a discreta queda da CA 19.9 foi detectada, e a explicação do colega foi de que não deveriam se animar porque em níveis tão elevados uma queda tão pequena não significava nada, apenas que tinha “muito câncer naquele corpo”. E a crueldade em geral alcançava seu auge ao término das consultas, quando alguma brincadeira macabra costumava fechar o encontro: “Boa sorte, você vai precisar!”, ou “Espero ainda te ver no retorno!”. Sádico, sem dúvida alguma. E inacreditável também.

Não é incomum que as relações entre médicos e pacientes sejam distantes, pouco empáticas ou insatisfatórias (para ambas as partes). Em Oncologia, onde uma doença grave está na mesa e onde muito sofrimento pode estar presente, muitos colegas evitam o envolvimento com a dor do outro num ato de proteção a si mesmos. Em outros casos, sua pouca habilidade em comunicar más notícias pode afastá-los de seus pacientes, preenchendo as consultas com termos técnicos e de significado duvidoso para evitar a clareza desconfortável da verdade. Há até quem sofra de um certo excesso de empatia, que paralisa o médico em sua tarefa de informar seus pacientes porque isso poderia fazê-los sofrer. Tudo isso é indesejável, mas é compreensível. Não temos uma formação profissional que favoreça relacionamentos saudáveis e empáticos com nossos pacientes. Na verdade, é exatamente o contrário: somos compelidos a voltar nossa atenção para doenças e seus respectivos tratamentos, deixando as humanidades devidamente escondidas sob o tapete. Não somos estimulados a ler nada que não sejam livros técnicos, nem a consumir filmes que nos relembrem da nossa condição de humanos, ou mesmo a procurar nossa própria essência (leia-se praticar o autocuidado, por exemplo). Somos parabenizados pela produtividade, acurácia e quantidade de conhecimento, mas não pelas relações que somos capazes de construir com as pessoas. Tudo isso é fato, e precisa ser transformado (já está sendo, aliás, e como isso é bom!). Mas o que ouvi da família agoniada de Sandro não foi fruto de despreparo, e sim da ausência completa do significado de ser médico. Não existe, em qualquer livro, aula, discussão acadêmica ou outros meios de ensino, alguma menção a sermos cruéis. A crueldade vem do regozijo com o sofrimento do outro, e a medicina vem do prazer em aliviar esse sofrimento. A mera coexistência das palavras medicina e crueldade na mesma frase já causa estranheza, mas identificá-las numa mesma pessoa é inaceitável e assustador.

Eu sei. Sei que é difícil. Sei que o equilíbrio entre comunicar uma notícia desalentadora e manter a esperança é algo desafiador e exaustivo. Sei que dói, sei que causa desconforto (sinto isso sob a pele todos os dias). Mas ainda assim precisamos fazê-lo, e usar nossa compaixão para ajudar as pessoas a seguir em frente mesmo assim, da forma como acharem mais significativa. Temos ferramentas para isso, se estivermos dispostos a buscá-las. Podemos aprender a nos comunicar melhor. Podemos encher nossas vidas de humanidades (a arte, a natureza e as relações humanas estão ao nosso redor o tempo todo). Mesmo que não busquemos essa lapidação na nossa prática, dificilmente isso acarretará atitudes cruéis. Na pior das hipóteses, talvez sejamos piores do que poderíamos para nossos pacientes. Talvez até sejamos maus profissionais, que seja. Mas a crueldade nada tem a ver com falta de formação ou com perfil profissional. Ela é uma psicopatia, e psicopatas são assustadores justamente por sua condição emocional pouco humana. Ironicamente (ou tragicamente), psicopatas comumente buscam as situações que favorecem seu sadismo, e lidar com pacientes em grande sofrimento pode ser um prato cheio para isso. Infelizmente, Sandro não foi a primeira vítima da crueldade médica, e nem será a última. Já vi e ouvi histórias suficientes para entender que a crueldade é mais comum do que imaginamos entre profissionais da saúde, sejam médicos, enfermeiros, psicólogos ou quaisquer outros. O que me dói mais ao ouvir essas histórias nem é a constatação desse enorme desvio de personalidade entre os profissionais, e sim a aceitação resignada disso por pacientes, familiares e pelos próprios colegas de profissão. Alguns encaram a situação até com certo estoicismo, como se esse acréscimo de dor fizesse parte do desafio. Não faz. Isso não é aceitável. Isso não é nem mesmo perdoável.

Entre os muitos ensinamentos que aprendi praticando a oncologia e os cuidados paliativos, uma frase sempre me vem à mente quando meus ouvidos são machucados com histórias como essa. Eu nem ao menos sei quem a escreveu, mas certamente o(a) autor(a) a proferiu num momento muito parecido com o que experimentei ali, olhando para Bernardo e Léo, ruminando sobre o que se passa na cabeça de um médico que vê no sofrimento alheio um terreno fértil para satisfazer seus próprios desejos mórbidos. “Se a dor do outro não te afeta, quem precisa de ajuda é você.”

3 de outubro de 2021
Ana Lucia Coradazzi

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E que os anjos digam amém

Uma bênção logo na primeira consulta. E em todas as consultas que se seguiram depois. Era assim que nossas conversas terminavam: as mãos dele sobre minha cabeça, ele de olhos fechados por alguns segundos, murmurando as palavras abençoadas que trariam coisas boas para minha vida. Eu, com as mãos cruzadas na frente do corpo, fechava os olhos e sorria, esperando que ele terminasse. Ele então devolvia o sorriso e saía, seguido da esposa, que pegava minhas mãos e, quase sempre emocionada, se despedia também. Esse era nosso ritual durante os meses em que cuidei do S. Mariano. Foram meses difíceis do ponto de vista oncológico, com muitos desafios relacionados ao tratamento e os efeitos colaterais atrelados a ele. Mas, se as demandas técnicas eram muitas, eu não podia dizer o mesmo das demandas emocionais. S. Mariano e D. Cilene traziam uma paz dentro de si que, para mim, era um sopro de alívio no meio de tantas consultas complicadas. As mãos dele sobre a minha cabeça eram apenas o presságio de uma bênção ainda maior: a de tê-los comigo durante parte da minha vida.

S. Mariano já tinha 80 anos quando recebeu o diagnóstico de câncer no reto, já com metástases no fígado. Era um idoso saudável até então, ativo, animado, independente. Embora soubéssemos que a doença seria um grande desafio, ele não titubeou por um momento sequer. Ia para a quimioterapia como quem vai a uma reunião com amigos. Fez amizade com as enfermeiras, com os radioterapeutas, com as recepcionistas. Tinha essa maravilhosa mania de deixar um rastro de alegria por onde passava. Não, isso não é um exagero: alegria devia ser seu primeiro nome. Mesmo quando não tínhamos boas notícias, S. Mariano sorria, e então dizia algo como: “Doutora, se Deus quer que meu caminho seja esse, que eu possa caminhar feliz por entre as pedras.” E foram muitas pedras. Tivemos que lidar com alguns efeitos adversos bem chatos da quimioterapia, como a diarreia, a fraqueza e a falta de apetite. A cirurgia também não foi fácil, com uma infecção no pós-operatório e a dificuldade de cicatrização. Mas quando eu perguntava se ele achava que estava valendo a pena, a resposta era imediata: “Lógico que está!” (e sim, a resposta era seguida de uma bênção ainda mais fervorosa sobre mim).

Depois de um ano de tantas pedras sendo retiradas do caminho, a doença resolveu assumir o controle. As lesões do fígado aumentaram rapidamente, o abdome começou a se mostrar inchado, e logo entendemos que o tempo estava ficando escasso. Ele começou a ficar mais fraco, o andar mais inseguro e, apesar do sorriso que não lhe abandonava o rosto, eu podia sentir que sua energia estava indo embora. Eu olhava para ele e meu coração se entristecia. Não que ele estivesse em sofrimento ou desespero, porque essas coisas não chegaram a fazer parte da vida dele, nem mesmo no final. Me entristecia a ideia de não tê-lo mais abençoando meus dias com suas palavras, seu olhar e suas mãos carinhosas. Eu queria que ele ficasse, mas precisava deixá-lo partir quando fosse a hora. Era o meu coração brigando consigo mesmo. Algumas vezes eu ficava imaginando como seria difícil esse momento. Muitas vezes ele tinha me dito que não estava no mundo para ser um fardo para os outros, que estava aqui para ser luz. Agora eu ficava pensando em como seria quando o câncer o subjugasse, tornando-o tão fraco que ele não poderia tomar conta de si mesmo sozinho. Ou quando o intestino ficasse obstruído a ponto de precisarmos interná-lo e discutir a necessidade de sonda e outras pequenas torturas que às vezes precisamos impor aos nossos pacientes, em nome de aliviar um sofrimento ainda maior causado pela doença. Pensava em como seria vê-lo internado em seus últimos dias, talvez confuso, talvez com indicação de ser sedado, sendo o “fardo” que ele não desejava ser. Secretamente, enquanto eu recebia uma de suas últimas bênçãos, pedi que a bênção voltasse para ele. E assim foi.

Dois dias antes de sua partida, numa sexta-feira à noite, recebi uma mensagem da nora, explicando que estava preocupada porque o abdome estava mais inchado e ele parecia muito fraco. Ela me mandou a foto, e era fácil perceber o líquido se acumulando por toda a barriga. Mas na mesma foto eu podia ver o rosto dele, abatido mas tranquilo. Orientei as medicações e, como ele mesmo pediu, combinamos que eu iria vê-lo no consultório na segunda. Não deu. No domingo, depois de uma tarde tranquila, registrada num video em que ele dá risada de um amigo que lhe aperta os peitos como uma buzina, S. Mariano subitamente piorou e foi levado às pressas ao Pronto-Socorro, falecendo pouco tempo depois. Nada de internações prolongadas, sondas, dependência, agonia. A última frase dele, para a nora, foi “Não se preocupe, Pretinha, eu não estou sentindo nenhuma dor.” Ele foi embora assim, como se os anjos tivessem vindo em missão especial para buscá-lo.

Hoje, pouco mais de um mês da despedida dele, eu me pego procurando seu nome na agenda de pacientes do dia, como eu fazia enquanto ele estava entre nós. Vê-lo na agenda me enchia de alegria. Significava que meu dia não seria tão difícil assim ou, se fosse, ficaria tudo bem. A serenidade dele e a generosidade traduzida pela sua fé tinham um poder maior sobre mim do que ele poderia imaginar (e do que eu mesma poderia). Ele buscava minha ajuda, mas quem recebia auxílio era eu. Hoje ele não está mais aqui, mas está. Por duas vezes, depois de consultas particularmente difíceis, pude sentir suas mãos sobre mim. Numa delas, quase pude ouví-lo sussurrando: “Deus abençoe seu trabalho, menina.” Chorei ao contar isso para minha secretária, que me confessou tê-lo por perto também, até hoje: ela, como eu, recebia bênçãos e sorrisos sem moderação. S. Mariano tinha toda razão. Ele veio para ser luz, e luz a gente leva para onde quer que haja escuridão. Esteja em paz, querido. Que os anjos digam amém.

9 de setembro de 2021
Ana Lucia Coradazzi

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De Mãos Dadas

Depois de 4 anos de trabalho dedicado, reflexões compartilhadas, leituras valiosas e muitas conversas com pacientes oncológicos e seus familiares, ficou pronto o livro De Mãos Dadas – o olhar da slow medicine para os pacientes oncológicos. Esse é um livro especial por muitos motivos. Ele foi concebido para ajudar as pessoas (pacientes, familiares e profissionais de saúde que atual junto à oncologia) a enxergar a vivência do diagnóstico de câncer por uma perspectiva mais sensata, mais respeitosa, mais compassiva e mais justa. Esse olhar, baseado nos princípios essenciais da Slow Medicine, traduz a Oncologia Sem Pressa.

Não se trata de uma revolução no tratamento, ou uma nova especialidade médica, ou algo “psicodélico”. De Mãos Dadas apenas nos lembra de como a medicina (em especial a oncologia) nunca deveria ter deixado de ser: centrada nas necessidades e valores do paciente, e não direcionada apenas à doença.

O livro descreve, em oito “Estações”, as vivências que pacientes, familiares e profissionais da saúde costumam experimentar, principalmente quando estamos falando do câncer em suas fases mais avançadas. É um livro duro, na medida em que não se furta a falar sobre os tabus que costumam permear nossas vidas (e embaçar nossa visão em relação à doença). Mas, ao mesmo tempo, mostra um caminho mais amoroso e sereno para que possamos (todos) lidar com a doença de um jeito menos traumático e mais compatível com o que é sagrado em nossas vidas.

De Mãos Dadas também é especial porque conta histórias reais de pacientes que passaram pela minha vida, ilustrando com suas histórias essas vivências tão desafiadoras. Ouvi-los traz um aprendizado que não tem preço: eles falam da vida apesar da doença.

Por fim, é um livro (muito) especial porque representa o primeiro livro sobre Slow Medicine originalmente publicado em Língua Portuguesa, e o primeiro no mundo a falar sobre Oncologia Sem Pressa. Não, não é pouca coisa, mas é só o começo.


O lançamento oficial será realizado em 16/09/2021, às 20 h, pelo canal do YouTube da Ophicina de Cuidados Paliativos (clique aqui).

O livro já está à venda pelo site da Ophicina (clique aqui se quiser comprar já), e os livros comprados pelo site deles até o dia do lançamento serão entregues autografados (😊).

8 de julho de 2021
Ana Lucia Coradazzi

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Sobre as perdas de cada dia

Karina chegou pela primeira vez ao consultório acompanhada do marido, Cláudio, e dos seus inseparáveis sapatos de salto alto. Perto dos 50 anos, ela tinha no olhar o brilho das garotas de 20 e a serenidade das mulheres de 60. Veio para conversarmos sobre o câncer da mama, mas a conversa foi muito além. Falamos dos filhos (as minhas e os dela), da campanha de vacinação contra a covid-19, de vinhos, da praia. Gostei dela desde os primeiros minutos, e conforme a conhecia melhor meu carinho por ela só aumentava. Karina era tranquila e determinada ao mesmo tempo. Não gostava de rodeios, não gostava de meias palavras. Cláudio, sempre com ela, era mais cerimonioso e cheio de dedos. Escolhia as palavras com cuidado e frequentemente se mantinha em silêncio. Era assim que eles pareciam funcionar: ela assertiva e resiliente, ele emocional e cauteloso.

O tratamento foi iniciado, e com ele vieram as perdas. Os cabelos, longos e bem cuidados, deram lugar a um couro cabeludo lisinho. Os cílios caíram. Ela perdeu peso. Sentia-se cansada e sem apetite. Abandonou os saltos altos (“Pelo menos por enquanto”) e a maquiagem impecável, adotando só um protetor solar e máscara para os cílios. Mas Karina continuava tranquila. A cada perda, ela via um ganho. Comprou um lenço para cada dia da semana, para variar o visual. Usava óculos escuros, que a deixavam com ares de atriz de cinema. As sapatilhas confortáveis logo ganharam seu apreço, e os quilos a menos eram considerados mais que bem vindos por ela. Até que foi Cláudio que saiu da sua vida.

Quando ela me contou do divórcio, a separação já tinha acontecido há mais de um mês. Com a voz serena e do seu jeito assertivo de sempre, Karina me contou da noite em que, após o jantar, ele se sentou ao lado dela e disse que para ele o fardo era pesado demais. Contou como ele se mostrou constrangido ao assumir que não suportava vê-la daquele jeito, e que não podia imaginar como seria quando a cirurgia da mama fosse feita. Cláudio chorou e pediu perdão a ela, disse que era um covarde mesmo, e que ela não merecia um covarde ao seu lado. Disse que há semanas vinha se torturando com a imagem da futura cirurgia, que passava um longo tempo na internet pesquisando sobre isso, e que cada vez mais se sentia aterrorizado. Karina ouviu tudo em silêncio. A uma certa altura da conversa, se levantou e pegou um copo de água para ele. Depois de um silêncio que lhe pareceu durar horas, perguntou o que ele pretendia fazer, e o ouviu descrever seus planos de se mudar para a casa de um amigo provisoriamente, e conversar com o advogado deles sobre os trâmites legais do divórcio. Mais um silêncio, e só uma lágrima escorreu dos olhos dela. Era isso. Fim.

Eu ouvia Karina falar com meu coração aos pulos. Uma mistura de tristeza, revolta, compaixão, e sabe-se lá mais que sentimento invadiu a minha alma. Se Cláudio estivesse na sala de espera, acho que eu teria ido até ele para deixar claro o tamanho da sua falta de caráter. Mas algo no olhar dela me fez interromper o turbilhão de emoções. Um olhar tranquilo, cheio de paz, até feliz. Perguntei como ela estava se sentindo.

– Livre, doutora. Não nasci para ser fonte de sofrimento para ninguém. Eu sou alegria, sou coragem, sou gratidão, sou cheia de planos. Não tem espaço para lamentos na minha vida.

Eu olhava para ela e sentia essa alegria, essa coragem, essa gratidão que vinham nas suas palavras. Perguntei se não tinha sentido mágoa ou dor em nenhum momento. Doeu. Uma dor aguda e rápida, como arrancar um esparadrapo, e que às vezes ainda voltava. Já mágoa, essa não. A mágoa, disse ela, só aparece quando a gente permite. Simples assim. Karina disse que entendia a vida como uma sucessão de ciclos. Um ciclo precisa se encerrar para que outro se inicie. O corpo é assim, a vida é assim, e os nossos relacionamentos também.

Antes de ir embora, me sorriu com toda a sua alma. Não tinha sinais de mágoa por ali. Na verdade, acho até que vi alívio, talvez compaixão pelo (agora ex) marido e pelas inúmeras pessoas que se perdem pela vida, incapazes de enxergar beleza quando a beleza está oculta. Por aqueles de nós que insistem em reformar o que não precisa de reforma, porque já está perfeito do jeito que está. Por aqueles que se deixam encantar pela perfeição, sem se dar conta de que o encanto está na ausência dela. O sorriso dela era por todos nós, quando permitimos que o mundo seja do jeito que é, e não do jeito que o vemos.