No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

13 de fevereiro de 2024
Ana Lucia Coradazzi

8 comments

Berê

“A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace”. (Victor Hugo)

    A Berê* tem pouco mais de sessenta anos. No corpo. Porque sua alma é certamente mais velha, talvez já conte alguns milênios. Com os anos acumulados de clínica, tendo visto tantas reações e olhares, ouvido tantas palavras e silêncios, vem ficando fácil para mim enxergar a longevidade de uma existência. Há um brilho diferente, uma faísca fugidia, um mistério delicado, uma sutileza nas palavras. Há sabedoria de vida por debaixo da pele, e luminosidade por trás dos olhos. Almas milenares são reconhecíveis pelo que provocam em nós. Um desconforto inexplicável, um encantamento doce. A Berê é assim. Eu soube desde que nos conhecemos, alguns anos atrás, por conta do seu diagnóstico de câncer de intestino.

    Ela não tinha nada demais. Uma mulher simples, de baixa estatura, os cabelos curtos um tanto mal cuidados, os dentes amarelados pelos muitos anos de tabagismo. Eu não me lembro das roupas que ela vestia, mas provavelmente uma camiseta bem larga e confortável estava presente, sua marca registrada até hoje. Ela vinha depois de algumas semanas da cirurgia intestinal, já quase recuperada. Confessou estar um tanto ressabiada com a necessidade de quimioterapia, a ideia não lhe agradava muito não. Mas, como aconteceu muitas vezes nos anos que se seguiram, conversa-vai-conversa-vem, nós entramos num acordo, e a quimioterapia começou. A Berê sofreu um pouco com o tratamento. As palmas das mãos e as plantas dos pés estavam tão finas que quase era possível enxergar através delas, e a fadiga também não foi algo lá muito confortável. Mas ela foi se utilizando da melhor estratégia já descoberta até hoje para lidar com situações difíceis: um dia de cada vez. O último dia de quimioterapia chegou, e a Berê sorria de uma orelha à outra. Disse que comemoraria com uma pinguinha das boas, que a ocasião merecia. Gargalhadas, abraços e piadas tomaram conta do consultório, naquele e em muitos outros dias depois.

    Passaram-se alguns meses. Estávamos tão próximas que eu já tinha ganhado um apelido: era a Pretinha dela. Ela se divertia com a confusão no rosto das enfermeiras quando perguntava pela Pretinha (para constar: sou loira de olhos claros, branca que nem bicho de goiaba, de pretas tenho só minhas pupilas). E assim ela trazia às consultas a alegria de estar de bem com a sua própria vida. Mas, como a vida gosta de nos surpreender, um dia a má notícia chegou: uma metástase no fígado. Expliquei com cuidado o que isso significava, e vi pela primeira vez em seus olhos a serenidade infinita que os habitava. Berê sorriu, me garantiu que não era o fim do mundo, e que existe coisa muito pior nessa vida. Sua alma de milênios transbordou pelo seu olhar, e a minha alma adolescente a abraçou de volta.

    O combinado era simples: faríamos algumas sessões de quimioterapia, repetiríamos a tomografia e, se o resultado fosse favorável, partiríamos para uma cirurgia no fígado. Tudo certo, tratamento iniciado, sem surpresas. A tomografia mostrou uma melhora impressionante na lesão hepática e a cirurgia estava sendo programada. Mas a vida, como a própria Berê já tinha entendido, não é muito afeita à calmaria. Poucas semanas antes do procedimento, um acidente de carro gravíssimo matou o genro dela, e deixou sua filha e sua netinha, de pouco mais de um ano, em estado gravíssimo. Foram dias inimagináveis para a Berê. Uma sombra escondia o que costumava ser só luz, vi muitas lágrimas turvando seus olhos. Mas a serenidade estava lá, irredutível. E eu soube que ela encontraria um jeito de passar por tanta dor.

    Para a Berê não fazia sentido prosseguir com nossos planos. Submeter-se a uma cirurgia grande, enquanto filha e neta estavam vivendo os dias mais dramáticos de suas vidas, seria uma insanidade. Mesmo a continuidade da quimioterapia lhe era secundária naquele momento. Adaptamos o tratamento, flexibilizamos as consultas, e as semanas foram esculpindo os sentimentos da Berê, tornando sua vida um pouco mais possível. Foram muitas semanas. De angústia, de medo, de insegurança, de dor. A filha, vítima de fraturas graves nas pernas, precisou de várias cirurgias e muita fisioterapia para conseguir voltar a andar. A netinha tinha ficado com sequelas neurológicas sérias, e não era capaz de respirar sem o auxílio de um ventilador. Difícil imaginar uma situação mais triste. Mas a Berê guardava em si a capacidade de agradecer pelo que tinha, mesmo que fosse tão pouco. Trazia vídeos da neta mexendo os olhinhos ou sorrindo, um rostinho que inspirava alívio, sem a agonia dos que sofrem. Para a Berê isso bastava para continuar sua vida. Estava em paz.

    Foi quase um ano de internação até que a netinha da Berê fosse para casa. Um esquema de cuidados foi montado, muita gente ajudou. Ela era grata por cada doação, de coisas, alimentos, tempo. Mas ela sabia que o tempo da neta estava acabando. Sentia sob sua pele. Um dia, mostrando algumas fotos da menina, ela cometeu um ato falho: “Olha, doutora, como ela era linda.” Era. No passado. Eu percebi o lapso, ela não. E, como a Berê já previa sem saber, duas semanas depois o tempo verbal tornou-se correto: sua menina faleceu em casa, tranquila, em meio a um abraço apertado da mãe. Quando a Berê me contou, só uma lágrima lhe correu o rosto. Uma só. Não por falta de tristeza, mas por não lhe faltar amor. O amor que respeita a vida quando ela precisa acabar. O amor em sua versão mais profunda. Era assim que sua alma milenar enxergava o mundo, e a si mesma.

    Quase dois anos se passaram desde o fatídico acidente. Foram muitos os percalços, e também foram muitas as negociações entre nós. Descartamos a ideia da cirurgia, mas a quimioterapia continua. Desde que não atrapalhe muito sua vida, desde que de vez em quando ela tenha algumas semanas de folga, desde que eu não insista mais na cessação do tabagismo, desde que que ela possa tomar a pinguinha sagrada do final de semana. Desde que eu esteja sempre ao seu lado. É precisamente este último acordo que me liga a ela de forma tão doce: eu a ajudo a atravessar as tempestades, e ela me ensina como fazer isso com sabedoria.

    Foram muitos passos juntas até aqui. A simplicidade dela, nos gestos, nas palavras (e nos muitos palavrões), amadurecem minha alma. Eu a observo quando está vindo pelo corredor, sorridente e falando mais alto do que o necessário, os chinelos de dedo, a camiseta dois números maior, e enxergo uma mulher gigante se aproximando. Assim como é gigante o abraço com que sempre nos despedimos, esperando fervorosamente que sempre tenhamos um próximo encontro. Quando chegar o dia em que esse encontro não acontecer – porque ou eu ou ela tivemos que desocupar o corpo que hoje nos acolhe -, saberemos onde encontrar uma à outra. Nos lugares onde o corpo não alcança, as almas chegam com a maior facilidade.

*nome fictício (assim como alguns dados da história) para preservar a identidade da paciente

8 comentários sobre “Berê

  1. Impossivel qualquer comentario sobre o que você escreveu…
    “Nos lugares onde o corpo não alcança, as almas chegam com a maior facilidade.”
    Só podemos ter esperança de em algum tempo e lugar reencontrarmos os que partiram antes de nós…
    Grata por tanta sensibilidade,
    Genoveva

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  2. Amo suas crônicas. Me enchem de alegria.
    Obrigada.
    Marília
    Enviado do meu iPhone

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  3. Mas que coisa mais bonita este texto! Lagrimas aqui pela ternura, pela tristeza e pela beleza da história.

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  4. que coisa mais linda.
    a história, suas palavras, a Berê
    obrigada por isso! bjs

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  5. Dra. Ana, a sua alma também é milenar, tanta sabedoria não foi adquirida somente nessa existência…privilégio conhecer uma pessoa tão especial, muita luz no seu caminho, que Deus te abençoe!

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