No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

4 de maio de 2015
Ana Lucia Coradazzi

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Onde é que dói?

“Médico tem que por a mão onde dói.” Foi a resposta rápida e constrangedora da docente, quando eu a informei que não tinha examinado o baço da paciente porque ela estava com muita dor. Ela, coberta de razão. Meu papel era justamente fazer o diagnóstico para poder tratar a causa da dor, e como diagnosticar sem examinar? Eu, morta de vergonha. O constrangimento serviu para que eu nunca mais deixasse de colocar a mão onde estava doendo. E também serviu para que eu aprendesse a não justificar minhas próprias falhas com desculpas descabidas. Médico tem, é óbvio, que por a mão onde dói.

A frase não saiu mais da minha cabeça, e pensei nela quando olhei para a Marta, sentada à minha frente. Marta tinha perto de trinta anos e um diagnóstico de câncer de mama metastático para a coluna. A queixa, como esperado, era dor nas costas. Mas ela falava da dor como algo inimaginável, muito mais intensa e sofrida do que a maioria das pacientes na mesma situação. Examinei, vi suas tomografias, chequei os tratamentos realizados e as medicações que ela vinha usando para a dor, e apesar de estar tudo conforme os protocolos de rotina, nada tinha adiantado. A dor lhe era insuportável.

Durante a internação continuei a seguir os tratamentos que eram padrão para o seu caso, e a cada dia ouvia a mesma resposta: “Não melhorou NADA, doutora.” Era angustiante. Levei o caso da Marta para discutir com a equipe multiprofissional e decidimos então abordá-la por pontos de vista diferentes. Ela foi vista pela psicóloga, pela assistente social e pela fisioterapeuta. Na reunião seguinte a psicóloga nos contou a história secreta de Marta. Ela era homossexual e vivia com Renata há três anos, sempre sem o conhecimento da mãe. Agora que estava doente, a mãe tinha se mudado para sua casa para cuidar dela, e isso tinha provocado uma revolução no relacionamento que ela tinha com a companheira, que não podia mais permanecer na casa o tempo todo e, mesmo quando ficava com ela, precisava assumir o papel de simples amiga. A mãe não permitia que Renata participasse dos cuidados, e mostrava-se até ríspida com ela. Mais de uma vez a mãe tinha manifestado um grande desagrado a respeito de homossexuais, e Marta tinha pavor de que ela ficasse sabendo. Um pavor tão grande quanto o que sentia em ficar separada da companheira. E que doía muito, tanto que remédio nenhum resolvia. A dor de Marta era na alma.

Ouvindo a história, um pensamento me veio à mente. Como é que o médico faz, quando a dor é na alma? Como se coloca as mãos num ponto tão profundo de uma pessoa? Em Cuidados Paliativos trabalhamos com um conceito a que chamamos de “sintomas totais”. A base dele considera que todos os sintomas humanos têm múltiplos componentes, como físico, emocional, espiritual, social. Uma pancada súbita na cabeça provavelmente será composta quase que totalmente de uma sensação física, enquanto que a dor causada por um câncer avançado, com meses de evolução, provavelmente terá um componente emocional muito significativo. Em alguns casos, o componente emocional é quase que exclusivo. Como no caso de Marta. A dor dela melhorou como que por encanto depois de uma abordagem multiprofissional organizada, na qual conseguimos conversar com a mãe, e ela aceitou de coração aberto o relacionamento da filha. As três passaram a morar juntas até o falecimento dela, meses depois. Ela mal precisou de analgésicos até lá.

Ignorar os componentes não-físicos dos sintomas é o mesmo que ignorar nossa própria complexidade. Oferecer morfina para uma dor que tem um forte componente emocional equivale a tentar matar a fome de alguém lhe dando parafusos para comer. Médicos não são capacitados para tratar as angústias e emoções profundas dos seus pacientes. Tampouco sabem como abordar dilemas espirituais ou existenciais. Mas o psicólogo sabe. O padre, o rabino e o pastor também. E os psicoterapeutas, e outros profissionais. Mas cabe ao médico identificar a necessidade de ajuda para controlar melhor os sintomas do seu paciente. Cabe a ele entender onde está o seu limite. É assim, simples assim, que o médico coloca as mãos na alma dolorida de alguém.

Dor na alma

 

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