No último dia 15 o New York Times publicou um texto da Dra. Dawn M. Gross a respeito da famosa (e tenebrosa) frase “Não há mais nada a fazer”, que tantos pacientes com doenças avançadas escutam de seus médicos, em geral bem perto do final de suas vidas. O texto é tão pertinente, tão próximo da realidade que a maioria dos paliativistas enfrenta, que não pude deixar de compartilhá-lo. Seguem abaixo as principais passagens do texto, em tradução livre para o português.
“Não há mais nada que possamos fazer.”
Essas palavras são ditas frequentemente por médicos antes de transferir seus pacientes para um hospice ou serviço de Cuidados Paliativos e são lamentavelmente proferidas poucos dias (senão horas) antes da pessoa falecer. Tais palavras não deixam espaço para esperança; elas transformam a transição para os cuidados de conforto em um destino final assustador.
Bem, a realidade é esta: sempre é possível fazer algo. Mais importante, pacientes sabem exatamente que “mais” eles desejam. A pergunta real é: Por que nós não perguntamos a eles?
“Se eu tivesse uma varinha mágica, o que você desejaria neste momento?” Essa é uma pergunta que costumo fazer aos meus pacientes quando os recebo em nosso hospice. Ninguém jamais questionou se eu estava menosprezando a doença. Pelo contrário, em geral recebo respostas imediatas, como “Faça minha ansiedade desaparecer” ou “Me leve para viajar e ver minha família”, ou ainda “Gostaria de ir para a minha casa e me sentar no meu jardim.”.
Essas são as coisas que as pessoas dizem, e repetem e repetem, quando lhes é dada a oportunidade de responder. O desafio real para os médicos, portanto, é ser capaz de descobrir os desejos reais de seus pacientes, numa ação que nos arranca para fora de nossa zona de conforto profissional. Às vezes, é justamente o profissional mais capacitado e bem intencionado que falha em satisfazer os desejos dos pacientes.
A paciente que me ensinou isso, a qual eu chamarei de Ms. Weatherby, tinha 57 anos e uma coleção apavorante de doenças, que conspiravam para fazê-la parar de respirar. Na primeira vez em que nos encontramos, ela ainda estava num ventilador mecânico na Unidade de Terapia Intensiva, sendo mantida viva pela máquina. A sedação necessária para manter um paciente nesta situação normalmente deixa as pessoas inconscientes, mas não Ms. Weatherby. Ela estava sentada no leito, com tubos entrando e saindo por praticamente todos os seus orifícios, e mesmo assim ela tinha encontrado uma posição que permitia que ela manuseasse seu laptop e se comunicasse com a família e os amigos. Ela estava completamente ciente de que não conseguiria sair do hospital com vida. Mas ela também sabia que sua família não estava preparada para perdê-la.
“Eu quero que minha família saiba que eu estou em paz”, ela escreveu em seu tablet quando fiz a pergunta da varinha mágica.
Médicos em geral presumem que o suporte à vida num caso como o dela exige um nível tão desconfortável de intervenções médicas que ninguém em sã consciência escolheria viver daquele jeito se soubesse que não haveria chance de recuperação e que morreria no hospital em breve. Ms. Weatherby mudou esse paradigma, não porque ela acreditasse que sairia do hospital (ou mesmo da UTI) – ela sabia que isso não aconteceria. Mas ela desafiou o pressuposto generalizado de que a vida seria insuportável naquela situação. Ela irradiava gratidão por estar viva.
Há vários dias, Ms. Weatherby vinha se queixando de desconforto abdominal. Ela vinha recebendo nutrição enteral por uma sonda em seu nariz, e portanto não era capaz de sentir o gosto dos alimentos. Quando parei para vê-la, ela agarrou uma caneta e escreveu “Eu vomitei dos pés à cabeça ontem à noite”. Este é um dos piores acontecimentos para alguém que está consciente e respirando por um ventilador, pois a pessoa não é capaz de controlar seu reflexo do vômito com um tubo enfiado em sua garganta. Mas ela continuou escrevendo, destemida, “Meu estômago está muito melhor. Depois que me deram banho e trocaram os lençóis e roupas, tive que escovar meus dentes!” e mostrou seus dentes brancos como pérolas. Aquela foi a primeira vez que alguém sugeriu que ela fizesse isso desde que tinha sido entubada. “Foi tão bom… Quero fazer isso de novo esta noite!” E eu respondi sorrindo: “Sim, mas desta vez você não precisa vomitar antes, certo?”
Surpreendentemente, ela conseguiu se livrar do ventilador alguns dias depois, tornando-se capaz de responder a perguntas sobre o cuidado que esperava receber.
“Se seus pulmões falharem novamente, você gostaria que o tubo fosse recolocado em sua garganta e que você voltasse para o ventilador?”, perguntei. “Se for necessário para me manter viva, vamos fazer isso. Não estou pronta para me desligar da tomada.” Conhecendo-a como eu a conhecia, eu ficaria surpresa se ouvisse outra resposta. Rapidamente informei aos outros colegas médicos sobre as expectativas dela.
“Como é que é? Ela quer ser re-intubada?”, o colega me perguntou, incrédulo. “Como é que isso pode ser chamado de Cuidado Paliativo? Ela jamais vai deixar o hospital!”
Quando o suporte avançado de vida significa conforto, em que momento nós estabelecemos o limite? Baseado no que aprendi com Ms. Weatherby, eu argumentaria que o Cuidado Paliativo começa quando removemos o limite. Quando retornei ao quarto dela na manhã seguinte, ela tinha sido re-intubada, estava consciente e digitando em seu laptop. Ela imediatamente pegou seu tablet e escreveu, adivinhando meus pensamentos: “Ainda quero ficar viva.” Eu disse: “Eu sei.”
Perguntei se eu poderia fazer algo por ela. Ela deu de ombros, fez uma pausa; juntou as palmas das mãos e inclinou a cabeça. “Rezar por você?”, sussurrei. Ela concordou com a cabeça. “Posso fazer isso.” Ambas sorrimos. Ela ajeitou seu vestido e eu notei seus pés batucando contra a cama da UTI, o cobertor mal podendo cobrí-los. “E quem sabe um par de meias coloridas e chiques para combinar com seu vestido?”, sugeri. Ela concordou enfaticamente, com os olhos brilhando. Prazeres simples e gratidão abundante… essa era Ms. Weatherby.
Ela continuou trabalhando incansavelmente para manter sua família unida. Especificamente, ela queria que sua morte pudesse unificar e curar as feridas de todos aqueles que ela amava profundamente.
Talvez o que faz com que a Medicina seja uma fronteira de descobertas sem fim tenha menos a ver com grandes avanços tecnológicos e mais a ver com como os pacientes lidam com aquilo que achamos que sabemos. Uma semana depois, o coração, os rins e os pulmões de Ms. Weatherby pararam de funcionar. A maioria dos familiares tinha conseguido viajar para vê-la ainda viva, e outros tinham feito isso via Skype. Ela morreu da forma como tinha vivido, vivendo cada momento como se fosse o último, agradecida por tudo o que recebia. Talvez a angustiante decisão entre continuar tratamentos “curativos” com pouca chance de melhora ou reorientar as estratégias de acordo com os desejos reais dos pacientes não seja mais complexo do que simplesmente permitir que as pessoas façam um pedido.
Para alguns, como meu pai, isso poderia significar estar cercado dos sons reconfortantes da sua casa, como o ronco do seu carro, o canto dos seus pássaros fora da janela e o ressonar da esposa dormindo ao seu lado. Para outros, pode significar permanecer num ventilador para que possa terminar de se despedir, tendo certeza de que poderá descansar em paz.
Os médicos só dizem “Não há mais nada a fazer” em uma única situação: quando deixam de perguntar.
*a Dra. Dawn M. Gross é médica paliativista e mora em San Francisco – EUA.
19 de julho de 2015 às 21:56
Belíssimo!!!! 😀 Parabéns por seu blog. Sou estudante de psicologia e apaixonada por cuidados paliativos, embora sei ainda bem pouco. Nós, que entendemos pouco de inglês, acabamos por perder tão ricos relatos. Gratidão por compartilhar seus conhecimentos aqui e traduzir artigos como esse! Abraços e muto sucesso.
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21 de julho de 2015 às 21:20
Obrigada, Juliana! Fico feliz em poder disponibilizar textos como esse. Eles traduzem de forma muito profunda o que eu vivencio todos os dias. Um grande abraço!
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21 de julho de 2015 às 17:45
Parabéns pelo post, você surpreendeu novamente. Vivemos e compreendemos bem essa fraze. O primo do meu marido, muito amigo nosso, teve câncer no intestino e fez uso de colostomia por mais de 18 anos. Mas o mais interessante para nós foi quando o oncologista, após a ultima cirurgia, sem sucesso para o remoção de um novo tumor e do questionamento do nosso primo “E aí ? não deu, não é? E o oncologista respondeu: Não. E o primo respondeu: Então só me resta viver, e ele viveu, com uma super qualidade de vida durarante mais 18 anos. Lógicamente com todos os cuidados paliativos por parte do Hospital como por parte da família e amigos.
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21 de julho de 2015 às 21:22
É exatamente isso, Fri. Qualidade de vida é o que o paciente diz que é. E pronto. Bjokas!!!
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30 de julho de 2015 às 20:50
Adorei seu blog,tendo vestibular para medicina porque meu sonho é ser oncologista pediatria.
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31 de julho de 2015 às 13:38
Obrigada, Nina! Muito sucesso para você!!!!!
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