*texto escrito pelo Dr. Lucas Cantadori, médico hematologista em Botucatu/SP
A rotina de quem trabalha com câncer nunca é fácil. É quase impossível separar nossa vida pessoal da nossa profissão, dada a dependência que os pacientes tem dos nossos cuidados. Desde o diagnóstico adequado, passando pelos esclarecimentos frequentes, planejamento e execução terapêutica, manejo dos efeitos colaterais e seguimento pós-tratamento, muitas são as vezes que nosso apoio é necessitado. Com o passar do tempo, adquirimos habilidades variadas, como o raciocínio rápido e o cuidado com as palavras e linguagem corporal ao conversar com familiares; como a capacidade de adequação ao contexto único de cada paciente. É o que define uma das maiores habilidades do oncologista: a resiliência emocional e psicológica.
Resiliência, essa capacidade de assimilar as situações da vida e seguir em frente, é uma das coisas que mais admiro nos meus pacientes. Porém, é uma qualidade também muito frequente e pouco reconhecida na maioria de nós, oncologistas. Exigimo-nos conhecer cada novo estudo clínico – muitas vezes englobando populações totalmente diferentes das do nosso meio – e saber adequa-los à nossa prática diária, enquanto nos esforçamos para responder da melhor forma possível cada pergunta vinda das mais diversas perspectivas. A produção científica é estrondosa, rápida, volátil. A tecnologia caminha a passos largos e as opções terapêuticas se multiplicam. Mas, no final das contas, tudo se resume ao consultório médico, portas fechadas, paciente e familiares à nossa frente.
Quando penso em resiliência, sempre me recordo da metáfora do boxeador. Quem pratica lutas como boxe ou MMA conhece o conceito da absorção de golpes. Ter a capacidade de assimilar um choque sofrido é parte fundamental no confronto. É preciso saber apanhar. O lutador que recebe um gancho de direita absorverá bem ou mal o golpe sofrido. Ele pode ir a nocaute de imediato. Mas pode também cambalear e devolver a energia recebida sob a forma de um contra-ataque. “Absorver o golpe” é saber assimilar, levar a energia recebida para dentro de si, aprendendo durante o processo (a melhorar a esquiva, a altura da guarda, o momento do contra-ataque).
A resiliência de cada paciente é acompanhada pela resiliência de cada oncologista. Para nós este atributo é tão importante quanto a capacidade de reconhecê-lo fraco e desgastado, o que pode tornar nossa profissão perigosa. Ter este sexto sentido para detectar nossos momentos de fraqueza é fundamental para que possamos buscar meios de nos reerguermos e seguir em frente. Seja lendo um livro, assistindo um filme ou correndo uma maratona. Essa reflexão foi inspirada no artigo publicado pelo oncologista canadense Daniel Rayson há poucas semanas. Vale a pena traduzir alguns dos parágrafos finais, onde ele discorre sobre a história de uma conversa entre um filósofo e um oncologista: “O filósofo explicou que nós normalmente acordamos a cada manhã com um frasco cheio de compaixão. Com o passar do dia, essas gotas de compaixão serão espalhadas onde são necessitadas e – para a maior parte das pessoas – quando chegam em casa do trabalho ainda há uma quantidade significativa pronta para ser usada no dia seguinte. Porém, em relação aos oncologistas, todas as gotas são usadas ao longo de sua rotina de trabalho. No final do dia, só resta o frasco vazio. Às vezes, o frasco acaba antes mesmo do final do dia. E nós retornamos para casa, ávidos pelo silêncio das nossas famílias, e vamos dormir, vazios. Para muitos de nós, essa carreira pode ser perigosa. O perigo existe quando o peso das nossas palavras ameaça nos esmagar enquanto enchem a sala ao redor de nós e dos nossos pacientes. Este não é um trabalho para os frágeis de coração, pobres de espírito ou fracos de psique. É importante que saibamos quando nossos frascos estão quase vazios…”
Leia o artigo de Daniel Rayson na íntegra em http://ascopubs.org/doi/full/10.1200/JCO.2017.73.9326
11 de outubro de 2017 às 00:22
Que lindo e triste.
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29 de outubro de 2017 às 18:47
Você sabe como é, tanto quanto eu, querida. Bjo carinhoso.
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