No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

14 de janeiro de 2018
Ana Lucia Coradazzi

11 comments

Num Mundo Perfeitamente Imperfeito

No final da visita, fiquei por alguns minutos sozinha com a filha da Dona Ângela. Tinha sido uma conversa difícil, na qual discutimos com a própria paciente sobre como ela gostaria que nos posicionássemos a partir daquele momento, considerando que seu câncer de pâncreas estava se alastrando rapidamente e sem qualquer resposta ao tratamento quimioterápico. Apesar de uma profunda tristeza pairando sobre todas nós, o tom da conversa tinha sido de serenidade, e a participação da psicóloga e da assistente social tinham contribuído muito para isso. A filha da Dona Ângela, de certa forma aliviada com as decisões que tinham sido tomadas ali, me abraçou e perguntou como é que conseguíamos trabalhar com algo tão difícil como Cuidados Paliativos. Disse que não conseguia imaginar o quanto devíamos presenciar de sofrimento, dor, angústia e tristeza. Na hora eu apenas a abracei de volta e disse que, para todas nós, era um aprendizado infinito.

Mais tarde, lembrando da nossa conversa, fiquei pensando nas dificuldades que realmente enfrentamos ao lidar com esses pacientes e familiares, e me surpreendi ao constatar que o mais difícil não era entrar em contato com o sofrimento em si. Na verdade, lidar com o sofrimento alheio e ser capaz de promover alívio é altamente gratificante. O mais difícil, a meu ver, é nosso trabalho em equipe. O sucesso no alívio do sofrimento exige que a equipe seja perfeita em suas atitudes, e o grande desafio está justamente aí: equipes perfeitas são formadas por pessoas imperfeitas, trabalhando num mundo pra lá de imperfeito.

Mas, então, como seria possível um resultado como o que vínhamos conseguindo com Dona Ângela? Sabemos que, mesmo imbuídos das melhores intenções, falhas no meio do caminho sempre acontecem. A enfermeira pode coletar um exame desnecessário, a assistente social pode fazer um comentário inadequado, o médico pode errar numa das avaliações clínicas, prescrevendo uma medicação que cause efeitos colaterais bem importantes. Sem falar nas inúmeras deficiências de estrutura física, administrativa e financeira que enfrentamos todos os dias, e que buscamos resolver antes que se tornem um transtorno a mais para o paciente e sua família. Superar e corrigir essas falhas costuma ser um hercúleo “trabalho de bastidores” que, se mal orquestrado, pode comprometer gravemente a confiança deles na equipe e na instituição, colocando em risco o resultado almejado: o alívio, em todas as suas dimensões.

É aí, bem nesse ponto, que está nosso grande desafio. Uma equipe perfeita é capaz de colocar o paciente e sua família num plano superior ao dos seus interesses individuais. Ao identificar uma falha, um descuido, uma fraqueza, a primeira atitude é pensar em como poderíamos melhorar como equipe para que o paciente obtenha o melhor resultado possível, e isso não é nada fácil. Exige uma grande disciplina. É necessário abdicar do nosso orgulho, da nossa necessidade de reconhecimento pessoal. É preciso praticar a humildade e a generosidade para que a falha do outro não se torne sua tortura. Reconhecer no erro do outro a nossa própria falibilidade. É preciso ouvir compassivamente, agir cautelosamente, e cultivar o respeito (profundo e irrestrito) pela competência do parceiro de equipe. É preciso confiarmos uns nos outros de forma incondicional. Sem isso, erros se tornam simplesmente acusações dolorosas, que em nada ajudam a quem realmente precisa: o paciente em sofrimento. Usar os erros dos outros para exaltar a própria competência técnica é um sinal claro de falta de inteligência emocional e de compaixão. E é uma armadilha sedutora para nós, simples humanos, mergulhados em nossas necessidades de atenção e de reconhecimento, e cheios de carências e inseguranças. Um teste ininterrupto a respeito de como controlamos nossa própria arrogância.

Se eu pudesse voltar à minha conversa com a filha da Dona Ângela, e ela me perguntasse de novo como conseguimos trabalhar com algo tão difícil como Cuidados Paliativos, creio que minha resposta seria outra. Eu diria que difícil é buscarmos a melhor versão de nós mesmos pelo maior tempo possível, e saber que cada parceiro de equipe faz exatamente a mesma coisa. Difícil é desejar, com todo o coração, que o outro se supere a cada dia, e tomar atitudes que permitam sua evolução pessoal. É enxergar no sucesso dos outros – paciente, familiares e equipe profissional – o nosso próprio sucesso. Difícil, de verdade, é encontrarmos o ser divino que habita cada um de nós.

11 comentários sobre “Num Mundo Perfeitamente Imperfeito

  1. Perfeito! Você é sensacional Ana! Deus te ilumine cada dia mais!

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  2. “Difícil, de verdade, é encontrarmos o ser divino que habita cada um de nós.” ❤ É mesmo difícil encontrar e reconhecer aquilo que habita em nós, principalmente, se for Luz! Como temos dificuldade em deixar a nossa luz brilhar… e a credito que o seja ainda mais, quando lidamos com tudo o que ocorre no final do corredor…

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  3. Oi Ana , parabéns por esse dom de escrever , dom de colocar em palavras tanta serenidade, tanto amor e tanto aprendizado , principalmente em um tema tão delicado e falto hoje em dia que é a terminalidade da vida ! Continue escrevendo, pois nós aprendemos muito com você, tu também contribui para nossa evolução pessoal , essas experiências nos agregam muito conhecimento ! Um abraço carinhoso !

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  4. Encarar a morte inevitável é muito difícil. Mas nessa fase, temos que considerar o tempo, os anos bons que se passaram, os sucessos conquistados, a família, os filhos, netos, amigos, viagens, momentos bonitos e inesquecíveis. Vivemos aproximadamente 75 anos e não é justo esquecermos 70 anos de passado glorioso e ficarmos presos e entristecidos na fase final da vida. As décadas de felicidade que se passaram não pode ser desprezadas, jamais. O passado tem muito valor e consequências muito positivas na formação da próxima geração, dos netos e familiares em geral.

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  5. Todas os textos partilhados trazem uma mensagem ao meu ver positiva da vida. Leio e fico pensando em cada palavra. Do quanto temos q aproveitar nossos dias com nossos familiares e amigos. É uma boa forma de orientação também leio atentamente cada pslavra e por vezes me emociono.
    Parabéns pelo trabalho maravilhoso que a senhora faz.

    Deus abençoe.

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  6. Parabéns pelo texto.
    São 4:54 da manhã e acabo da dar a noticia do obito de um homem para duas mulheres que estavam com seu pai e esposo internados nessa UTI há 71 dias. Elas já estavam “esperando” o desfecho, mas a noticia sempre é dificil. Para nós que a damos e infinitamente mais para os que recebem.

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    • Essa hora é sempre difícil demais, Graziele. Mas o fato de ser difícil revela justamente que nossa capacidade de empatia e compaixão permanece presente. No dia em que for fácil, algo valioso se perdeu dentro de nós. Um imenso abraço!

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