E ali estávamos nós duas, sentadas uma em frente à outra, na pequena sala destinada aos familiares de pacientes internados na enfermaria. O dia estava claro e tranquilo, e podíamos até ouvir alguns passarinhos se divertindo no batente da janela. O clima leve e alegre do dia, no entanto, em nada refletia a dor da nossa conversa. Após meses de internação, centenas de exames, tratamentos difíceis e complicados, Edson*, o filho mais novo de Dona Graça*, estava morrendo. Edson tinha um câncer de estômago já bem avançado, que tinha obstruído quase por completo a passagem dos alimentos e lhe causava náuseas intensas, soluços contínuos e uma dor persistente na região do tórax. Embora ele mantivesse a alimentação parenteral (administrada através das suas veias), a evolução da doença era implacável e tinha consumido seu corpo até deixá-lo caquético, com uma fadiga tão intensa que limitava até mesmo atos simples, como ir ao banheiro sozinho. Seu cansaço era visível nas grandes olheiras que se formavam sob seus olhos, os quais um dia já tinham exibido uma vivacidade incomum. A vida dele tinha se transformado no oposto do que ele considerava uma vida digna, ou minimamente feliz.
Dois dias antes, Edson tinha começado a sentir falta de ar, provavelmente por uma embolia pulmonar, e estava claro que seu tempo entre nós seria breve. Para ele, bastava. Nas muitas conversas que ele tinha tido com a equipe de saúde, com Dona Graça e com o irmão, Edson tinha deixado claro que viver daquela forma era pior que morrer, e que ele estava pronto para terminar seus dias. Tinha tido uma vida feliz, e queria partir em paz. Nas últimas horas, Edson só dormia, confortável. Estava esperando seu momento final.
Peguei nas mãos de Dona Graça, com seus 88 anos, apertando seus dedos frios e enrugados. A maquiagem, sempre impecável, hoje estava borrada e mal feita. A roupa não tinha o esmero de todos os dias, e seu olhar estava permeado de dúvidas. Perguntei como ela estava. Um pequeno silêncio, um suspiro, e então sua voz dolorida: “Com um buraco sem fundo bem no meio do meu peito.” Ela começou a falar, pausadamente, como se falasse para si própria. Falou sobre jamais ter se preparado para perder um filho. Sobre como algo assim parecia errado e anti-natural, e como não podia imaginar sua vida dali para frente. Era como se não tivesse sobrado nenhuma razão para continuar viva. Falou sobre a dor infinita por vê-lo ir embora sem que ela pudesse fazer nada para impedir, e sobre não conseguir mais sentir esperança.
Contou sobre a relação dos dois ao longo dos cinquenta e poucos anos de vida de Edson. A parceria. As palhaçadas. A ajuda que ele costumava dar a quem o procurasse. As bobagens que ele tinha feito. Durante sua fala, por alguns milésimos de segundo, era possível enxergar o orgulho que ela tinha do filho em meio à sua dor infinita. Nos olhos, lampejos de gratidão por tê-lo ao seu lado durante todos aqueles anos. Nas palavras, a constatação do preço que nos é cobrado por amarmos profundamente alguém.
Larguei suas mãos e a abracei. Ela me perguntou, frágil como só alguém nessa situação pode ser: “Querida, você já perdeu alguém na sua vida?”. Sim, eu tinha perdido meu pai, poucos anos antes. Mas diante daquela mãe tão sofrida, minha perda parecia tão pequena… Disse a ela que eu não conseguia sequer imaginar o tamanho da dor de perder um filho. Já com meus olhos molhados, disse que apenas imaginar minhas filhas indo embora já me enchia de tristeza, e que eu podia enxergar o tamanho do seu sofrimento. Embora eu não pudesse sentir o que ela estava sentindo, eu podia entendê-la. E podia contar a ela como tantas mães que já acompanhei perdendo seus filhos conseguiam lidar com esse vazio infinito dentro do coração.
Não, a dor não vai sumir. Assim como não vão sumir as lembranças, o afeto, o carinho. O que mudará será a forma de lidarmos com isso, num processo lento e único. Os dias terríveis que se seguem à partida, e que parecem infindáveis. Os pequenos momentos de alegria que vão aparecendo após algum tempo, entre uma lágrima e outra. A surpresa por, de repente, ter um dia bom, e depois outro, depois vários dias bons numa mesma semana. E a dor transformada em saudade, em gratidão, em paz.
Dona Graça apertou minhas mãos, me puxando num outro abraço. “Como é que vou viver sem ele em minha vida? Como elas fazem isso?” Eu me lembrei de uma mãe incrível, que alguns meses depois da morte da filha de apenas 19 anos me disse que sua forma de mantê-la sempre por perto era fazer escolhas que a encheriam de orgulho. Era assim que ela prestava, diariamente, homenagens à filha ausente. Era assim que sua filha continuava fazendo parte de sua vida todos os dias. Contei essa história à Dona Graça, e vi em seus olhos a pequena esperança cultivada pelas mães de que terão seus filhos sempre perto de si. É, talvez seja assim. Talvez seja possível termos nossos filhos por perto, sem importar onde estejam. Talvez possamos inserir suas almas em nossas vidas, em nossos atos, permitindo que eles nos transformem como pessoas mesmo quando não estão ao nosso lado. Não sei. Mas ali, naquela sala, em frente à Dona Graça e aos seus olhos doloridos, essa esperança era tudo o que tinha nos restado.
Edson faleceu poucas horas após essa conversa, com Dona Graça ao seu lado, de mãos dadas com ele.
*nomes fictícios para proteger a privacidade
17 de novembro de 2018 às 14:15
Mais uma vez, termino às lágrimas! Obrigada por mais esta história!
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17 de novembro de 2018 às 19:28
Lágrimas muitas vezes valem a pena. Um abraço enorme, Vanusa!
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18 de novembro de 2018 às 21:35
Tocou a minha alma. Gratidão! Grande abraço e até breve.
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17 de novembro de 2018 às 14:30
De novo Dra. Esse vento que joga poeira nos meus olhos cada vez que leio seus posts.
Deus te abençoe, Nossa Senhora te dê forças e o Espírito Santo te encha discernimento para usar as palavras certas nestas horas tão tristes.
Obrigada! 🙏🏻🙏🏻🙏🏻
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17 de novembro de 2018 às 19:30
Obrigada, Viviani… eu sempre peço ajuda lá de cima nesses momentos. Sozinha, seria impossível. Beijo!
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17 de novembro de 2018 às 16:40
Sempre muito emocionante… mas dessa vez , se tratando de mãe que perde filhos, mais doloroso…
Obrigada por nos dar oportunidade de pensar e aprender com as experiências de outros!!!
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17 de novembro de 2018 às 17:04
Realmente, perder um filho é um “buraco sem fundo, bem no meio do nosso peito”. Não existe dor maior! E depois? O que interessa o depois? Depois, só nos resta honrar a sua memória, vivendo cada dia da melhor forma que conseguirmos.
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17 de novembro de 2018 às 19:31
Também acho, Wanda, e vejo exatamente isso nas mães que perdem seus filhos. De alguma forma, elas transformam a dor em uma homenagem, fazendo com que a vida deles, mesmo que curta (às vezes curtíssima), tenha valido a pena. Abraços carinhosos!
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18 de novembro de 2018 às 07:34
Um abraço pelo seu carinho.
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18 de novembro de 2018 às 07:56
Ler essas histórias nos torna pessoas mais fortes e sensíveis na mesma proporção!
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19 de novembro de 2018 às 06:15
Deus sempre te coloca no lugar certo e na hora certa! Orgulho gigante de trabalhar contigo s2
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19 de novembro de 2018 às 09:21
Dra Ana ! Mais uma vez uma linda história ! Que Deus te abençoe para sempre usar palavras que tragam algum alento à essas pessoas ! Gratidão por compartilhar ! Abraço carinhoso !
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