“Eu vejo com meus olhinhos… um objeto verde!” Assim começava uma das brincadeiras que mais divertiam a Lorena, minha filha caçula, até muito pouco tempo atrás. Primeiro, vinha a cara de sapeca. Depois, os olhinhos revirando em todas as direções, buscando um objeto que fosse difícil de ser “adivinhado”. E então vinha a frase: “Eu vejo com meus olhinhos…”, e eu tinha que encontrar, dentro do meu campo de visão, qual era o tal objeto que os olhinhos dela tinham escolhido. Ela gargalhava ao me ver, perplexa, tentando adivinhar qual era o objeto verde, ou pontudo, ou fofinho, ou melequento, que aqueles belos olhinhos tinham captado. Às vezes, ficávamos muito tempo perdidas na brincadeira, e a parte mais gostosa era simplesmente olhar para ela e imaginar o que se passava ali dentro.
Foi disso que me lembrei quando vi Dona Alzira ali, sentada à minha frente no consultório, a máscara encobrindo quase todo o rosto, mas deixando de fora os dois pequenos olhinhos pretos, que corriam de lá pra cá, daqui pra lá. Com seus mais de oitenta anos, tinha a altura da Lorena. Era pequena e magrinha como ela também. Pouco mais de um mês antes, Dona Alzira tinha acordado sem conseguir falar. Tentou chamar a filha, não conseguiu. Tentou sair da cama sozinha e caiu, ruidosamente, no tapete. Só então percebeu que não estava conseguindo mover todo o lado direito do seu corpo. A filha veio correndo e, imaginando que fosse um derrame, chamou o SAMU. Algumas horas depois, o médico veio para lhes dar a notícia de que ela estava com um nódulo no cérebro, que provavelmente era uma metástase de algum tumor. Dois dias depois, Dona Alzira foi operada para a retirada do tal nódulo, confirmando o diagnóstico do médico. Ela tinha um câncer no pulmão, até então sem nenhum sintoma, que tinha resolvido se espalhar pelo seu corpo e se instalar na porção anterior do cérebro dela, causando um tremendo estrago. E foi assim que ela tinha vindo parar ali, à minha frente, no consultório.
Mesmo com a retirada do nódulo, Dona Alzira não estava muito melhor. Movimentava muito pouco o braço e a perna direitos, e embora estivesse lúcida e compreendesse o que eu dizia, ela não conseguia se expressar – o que chamamos, tecnicamente, de afasia de expressão. Ela apontava objetos com a mão esquerda, emitia alguns sons e até palavras inteiras, mas que não correspondiam ao que ela gostaria realmente de dizer. Na maior parte do tempo, era a filha que traduzia, do jeito que dava, as respostas às minhas perguntas. E foram muitas perguntas. Como foi a cirurgia? Como ela estava se sentindo agora? Ela tem algum outro problema de saúde? toma alguma medicação? Qual? Ela fuma? Fumava antes? Onde vocês moram? Como ela era antes disso tudo acontecer? Quem mais ajuda nos cuidados do dia-a-dia? Conforme eu ia conhecendo a história dela, mais eu me perdia nos seus olhinhos pretos. A filha respondia às perguntas, mas eu procurava neles as respostas. Dona Alzira olhava para mim, para a filha, para a porta, para a enfermeira, para o teto. Prestava atenção nas palavras da filha e, se a resposta lhe parecia incorreta, mudava rapidamente a direção do olhar, tentando mostrar que o caminho era outro. Foi assim quando perguntei se ela tinha dor de cabeça e a filha disse que não: Dona Alzira arregalou os olhos e olhou insistentemente para mim: “Tenho sim, tenho dor de cabeça”, os olhinhos diziam. Também foi assim quando perguntei se tomava mais alguma medicação além das já relatadas: olhinhos revirando para a bolsa e para a filha: “Sim, tem o remédio da artrose!”. Pergunta após pergunta, resposta após resposta, fomos as três nos entendendo. No final da consulta, já não estava tão difícil para mim entender o que os olhinhos de Dona Alzira me diziam.
Quando a filha saiu para conversar com a assistente social e fiquei algum tempo a sós com ela, nós permanecemos em silêncio. Eu olhava para ela e entendia que estava sorrindo. Ficava imaginando tudo o que aqueles olhinhos já tinham visto na vida, e o quanto vinham se espantando com o mundo confuso e diferente que Dona Alzira vinha frequentando nas últimas semanas. Imaginei a dificuldade de ter sido levada às pressas ao hospital, sem conseguir dizer o que estava sentindo, dependendo completamente de pessoas estranhas e que falavam termos técnicos e difíceis de entender. Pensei no tamanho da fragilidade de ser submetida a uma cirurgia no cérebro sem conseguir expressar o que achava sobre tudo aquilo, sem direito a um palpite ou uma pergunta. Aqueles olhinhos devem ter se assustado um bocado… e ainda assim estavam ali, sorrindo por trás da máscara, mostrando que estavam, finalmente, tranquilos. Naqueles poucos minutos sozinhas, quem viu (muito) com os olhinhos fui eu.
13 de abril de 2021 às 22:19
Imagino o que a Dra.sentiu ao efetuar tantas perguntas e muitas vezes receber a resposta apenas através do olhar! Como pode um serzinho desses depois de tamanha caminhada pela vida aos 80 anos se deparar com essa “situação” nada confortável! Que o Mestre maior e seus anjos possam ampará-la neste momento difícil, extendendo aos seus familiares também. Paz e bem…
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