
Uma bênção logo na primeira consulta. E em todas as consultas que se seguiram depois. Era assim que nossas conversas terminavam: as mãos dele sobre minha cabeça, ele de olhos fechados por alguns segundos, murmurando as palavras abençoadas que trariam coisas boas para minha vida. Eu, com as mãos cruzadas na frente do corpo, fechava os olhos e sorria, esperando que ele terminasse. Ele então devolvia o sorriso e saía, seguido da esposa, que pegava minhas mãos e, quase sempre emocionada, se despedia também. Esse era nosso ritual durante os meses em que cuidei do S. Mariano. Foram meses difíceis do ponto de vista oncológico, com muitos desafios relacionados ao tratamento e os efeitos colaterais atrelados a ele. Mas, se as demandas técnicas eram muitas, eu não podia dizer o mesmo das demandas emocionais. S. Mariano e D. Cilene traziam uma paz dentro de si que, para mim, era um sopro de alívio no meio de tantas consultas complicadas. As mãos dele sobre a minha cabeça eram apenas o presságio de uma bênção ainda maior: a de tê-los comigo durante parte da minha vida.
S. Mariano já tinha 80 anos quando recebeu o diagnóstico de câncer no reto, já com metástases no fígado. Era um idoso saudável até então, ativo, animado, independente. Embora soubéssemos que a doença seria um grande desafio, ele não titubeou por um momento sequer. Ia para a quimioterapia como quem vai a uma reunião com amigos. Fez amizade com as enfermeiras, com os radioterapeutas, com as recepcionistas. Tinha essa maravilhosa mania de deixar um rastro de alegria por onde passava. Não, isso não é um exagero: alegria devia ser seu primeiro nome. Mesmo quando não tínhamos boas notícias, S. Mariano sorria, e então dizia algo como: “Doutora, se Deus quer que meu caminho seja esse, que eu possa caminhar feliz por entre as pedras.” E foram muitas pedras. Tivemos que lidar com alguns efeitos adversos bem chatos da quimioterapia, como a diarreia, a fraqueza e a falta de apetite. A cirurgia também não foi fácil, com uma infecção no pós-operatório e a dificuldade de cicatrização. Mas quando eu perguntava se ele achava que estava valendo a pena, a resposta era imediata: “Lógico que está!” (e sim, a resposta era seguida de uma bênção ainda mais fervorosa sobre mim).
Depois de um ano de tantas pedras sendo retiradas do caminho, a doença resolveu assumir o controle. As lesões do fígado aumentaram rapidamente, o abdome começou a se mostrar inchado, e logo entendemos que o tempo estava ficando escasso. Ele começou a ficar mais fraco, o andar mais inseguro e, apesar do sorriso que não lhe abandonava o rosto, eu podia sentir que sua energia estava indo embora. Eu olhava para ele e meu coração se entristecia. Não que ele estivesse em sofrimento ou desespero, porque essas coisas não chegaram a fazer parte da vida dele, nem mesmo no final. Me entristecia a ideia de não tê-lo mais abençoando meus dias com suas palavras, seu olhar e suas mãos carinhosas. Eu queria que ele ficasse, mas precisava deixá-lo partir quando fosse a hora. Era o meu coração brigando consigo mesmo. Algumas vezes eu ficava imaginando como seria difícil esse momento. Muitas vezes ele tinha me dito que não estava no mundo para ser um fardo para os outros, que estava aqui para ser luz. Agora eu ficava pensando em como seria quando o câncer o subjugasse, tornando-o tão fraco que ele não poderia tomar conta de si mesmo sozinho. Ou quando o intestino ficasse obstruído a ponto de precisarmos interná-lo e discutir a necessidade de sonda e outras pequenas torturas que às vezes precisamos impor aos nossos pacientes, em nome de aliviar um sofrimento ainda maior causado pela doença. Pensava em como seria vê-lo internado em seus últimos dias, talvez confuso, talvez com indicação de ser sedado, sendo o “fardo” que ele não desejava ser. Secretamente, enquanto eu recebia uma de suas últimas bênçãos, pedi que a bênção voltasse para ele. E assim foi.
Dois dias antes de sua partida, numa sexta-feira à noite, recebi uma mensagem da nora, explicando que estava preocupada porque o abdome estava mais inchado e ele parecia muito fraco. Ela me mandou a foto, e era fácil perceber o líquido se acumulando por toda a barriga. Mas na mesma foto eu podia ver o rosto dele, abatido mas tranquilo. Orientei as medicações e, como ele mesmo pediu, combinamos que eu iria vê-lo no consultório na segunda. Não deu. No domingo, depois de uma tarde tranquila, registrada num video em que ele dá risada de um amigo que lhe aperta os peitos como uma buzina, S. Mariano subitamente piorou e foi levado às pressas ao Pronto-Socorro, falecendo pouco tempo depois. Nada de internações prolongadas, sondas, dependência, agonia. A última frase dele, para a nora, foi “Não se preocupe, Pretinha, eu não estou sentindo nenhuma dor.” Ele foi embora assim, como se os anjos tivessem vindo em missão especial para buscá-lo.
Hoje, pouco mais de um mês da despedida dele, eu me pego procurando seu nome na agenda de pacientes do dia, como eu fazia enquanto ele estava entre nós. Vê-lo na agenda me enchia de alegria. Significava que meu dia não seria tão difícil assim ou, se fosse, ficaria tudo bem. A serenidade dele e a generosidade traduzida pela sua fé tinham um poder maior sobre mim do que ele poderia imaginar (e do que eu mesma poderia). Ele buscava minha ajuda, mas quem recebia auxílio era eu. Hoje ele não está mais aqui, mas está. Por duas vezes, depois de consultas particularmente difíceis, pude sentir suas mãos sobre mim. Numa delas, quase pude ouví-lo sussurrando: “Deus abençoe seu trabalho, menina.” Chorei ao contar isso para minha secretária, que me confessou tê-lo por perto também, até hoje: ela, como eu, recebia bênçãos e sorrisos sem moderação. S. Mariano tinha toda razão. Ele veio para ser luz, e luz a gente leva para onde quer que haja escuridão. Esteja em paz, querido. Que os anjos digam amém.




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