Quando nos conhecemos, meus olhos logo registraram a imagem estampada na camiseta. Uma imagem que conheço muito bem: Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Já a vi muitas e muitas vezes, em terços, figuras impressas, estatuetas e até pessoalmente, durante as visitas que já fiz ao santuário em Aparecida do Norte. Não me causa estranheza a fé na proteção da santa, tão querida entre os brasileiros e tão invocada nos momentos desafiadores das nossas vidas. Ali, na camiseta, via-se a imagem do rosto dela, com sua coroa dourada e as mãos em prece, cercada por um halo luminoso e uma atmosfera de paz. Eu estava diante de uma mulher de fé.
Falamos sobre muitas coisas nessa primeira consulta. Muitas explicações sobre o diagnóstico – um câncer de mama em fase inicial, mas que precisaria de quimioterapia para complementar o tratamento – e sobre os possíveis efeitos colaterais das drogas. Conversamos sobre o tempo previsto para concluir os ciclos de quimioterapia, os exames que seriam necessários periodicamente, a possibilidade de um teste genético para saber se o câncer era “herança de família”. Foi uma conversa longa e tranquila, eu, ela e sua filha mais velha, permeada por sorrisos, perguntas pertinentes, dúvidas corriqueiras. Ela terminou a consulta com uma frase que já ouvi incontáveis vezes: “Vai dar tudo certo, com a graça de Nossa Senhora”. Respondi: “Amém”.
Na segunda consulta, a mesma camiseta adentrou o consultório. Assim como na terceira, e na quarta, e em todas as outras. Não sei por que, senti receio em perguntar a ela a história da camiseta, mas guardei para mim a versão de que era para ela uma espécie de amuleto de fé, de proteção, como vemos tantos por aí. Passaram-se os meses da quimioterapia, e os encontros entre nós – eu, ela e sua camiseta abençoada – foram espaçados. Dois anos depois, chegou a notícia de uma recidiva, na forma de nódulos no fígado e nos pulmões. Ela se sentou à minha frente, o olhar um pouco tenso, mas o sorriso sereno de sempre. Conversamos sobre o significado das metástases no fígado e sobre o tratamento, que agora não teria mais prazo para terminar. Falamos, inclusive, sobre a morte. Seus olhos vagueavam entre os próprios joelhos e o meu rosto. Não é nada fácil ouvir que o câncer voltou a dar o ar de sua (des)graça. Com as mãos sobre a imagem da santa, ela repetiu: “Vai dar tudo certo, com a graça de Nossa Senhora”. Amém. Amém. Amém.
Como já esperávamos (e acreditávamos), a quimioterapia fez seu trabalho. As metástases diminuíram de tamanho, algumas até desapareceram. Depois de alguns meses – como também já era previsível -, a doença se tornou refratária ao esquema de tratamento, e mudamos a estratégia. Uma, duas, três vezes. Dias de celebração, dias de frustração. Costuma ser assim o percurso de quem vivencia o câncer metastático. Foi durante uma fase particularmente boa que ela me surpreendeu, comparecendo à consulta sem a tal camiseta. Estranhei. Na verdade, me preocupei. Não é frequente que as pessoas abandonem suas crenças, e eu já tinha me habituado a vê-la contar com santa em todos os momentos. Fé para os tempos de dor, gratidão para os tempos de alegria. Mas naquele dia a santa não veio à consulta. Ué? Ela foi então para a sala de quimioterapia e, por sorte, cruzei com a filha no corredor. Perguntei sobre a camiseta, e ouvi dela a história que me intrigava há tantos anos.
A camiseta tinha sido comprada no próprio santuário de Aparecida do Norte, há longínquos 30 anos. Ela tinha visitado o local para pagar uma promessa: se sua filha (a mais nova) sobrevivesse à prematuridade – tinha nascido de 6 meses -, ela iria até Aparecida todos os anos homenageá-la, orando fervorosamente pela santa e espalhando sua palavra pelo mundo. Escolheu a camiseta entre as muitas opções disponíveis porque o olhar da santa estampada a cativou. Decidiu, naquele momento, que usaria a roupa todas as vezes em que se sentisse desprovida de coragem, e também quando tivesse motivos para agradecer. E assim vinha sendo nesses 30 longos anos. Até há três semanas, quando a filha mais nova sofreu um aborto espontâneo, o terceiro desde que decidiu ser mãe. Diferentemente dos dois primeiros, este aborto colocou a vida da filha em risco, e ela por pouco não se foi em decorrência de uma hemorragia uterina grave, que culminou na necessidade de retirada do seu útero. Uma situação dramática para uma mulher tão jovem e com um grande desejo de gestar seus filhos.
Foram inúmeras as preces até que a filha dela se recuperasse e, apesar da imensa tristeza da perda – do bebê e da perspectiva da maternidade -, todos agora respiravam aliviados pela sobrevivência da moça. A filha mais velha, emocionada, chorou contando a história. Perguntei o motivo do abandono da camiseta da santa, já que apesar de tudo a filha sobrevivera. Ela suspirou, com um sorriso tímido. Logo depois do ocorrido, a mãe tinha passado por um momento sombrio em que questionou profundamente sua fé. A dor de ver os sonhos da filha se dissolverem diante dos seus olhos, sem que ela pudesse fazer nada para impedir, dilacerou seu peito. A santa tinha falhado com ela. Mesmo diante de sua proposta de trocar sua própria vida pela da filha, de suas promessas, de seus pedidos sinceros e sofridos, os netos tão esperados não viriam do ventre dela. Que santa era aquela que, mesmo tendo experimentado o milagre de se tornar mãe de um ser abençoado como Jesus, privava uma mulher tão amorosa de gerar seus próprios filhos? Foram dias muito difíceis, de revolta e dor. A camiseta foi enfurnada no fundo de uma gaveta, ficou muitos dias por lá.
Uma manhã, em meio à amargura e em frente a uma xícara de chá, ela se deu conta de que não seria justo responsabilizar Nossa Senhora por tudo de ruim que acontece em sua vida. Lembrou-se de que a dor de hoje só lhe tomava as entranhas porque no passado ela própria tinha sido contemplada com a alegria de ter a filha nos braços, viva e saudável, e de ter convivido com ela durante todos esses anos. A dor se apequenou em seu peito. Sentiu-se grata, até mesmo pela dor. Foi a partir desse dia que a camiseta deixou de ser necessária. A coragem não estava no tecido puído com a imagem de Nossa Senhora: ela crescia por debaixo da pele, pulsando todos os dias, nos luminosos e nos sombrios. A santa morava ali dentro.
A fé sempre me atravessa. A ausência dela também. Ao ouvir a história dela, me lembrei das muitas vezes em que duvidei, esqueci, transformei minhas crenças pessoais. Minha fé não está em santos ou imagens, nem mesmo se aproxima da teologia. Mas tenho uma fé (quase) inabalável na capacidade humana de lidar com a dor, com a alegria, com o desespero, com o medo, com o impensável, com o imponderável. Já vi a inquietude e a angústia de perto, assim como vi pessoas superando-as. Já vi a dor numa profundidade caótica, assustadora, e o alívio que, na ineficácia dos nossos analgésicos, só poderia mesmo vir da alma humana. No final das contas, cada um de nós tem o direito a acreditar no que (ou em quem) quiser. Mas, no que tange aos laços que nos unem, o que não pode acabar é nossa fé na Humanidade.
*Esta é uma história baseada em fatos reais, mas alguns acontecimentos foram modificados para evitar a identificação das pessoas envolvidas, e também em nome da arte.




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