Era só mais uma consulta de rotina. Ela, com um câncer de mama inicial, em tratamento com hormonioterapia. Estava bem, sem nenhuma queixa específica. Sim, doutora, estou fazendo caminhadas umas três vezes na semana. Sim, fui ao ginecologista no mês passado. Não, a alimentação ainda não está lá essas coisas, mas estou me esforçando. Respostas diretas para perguntas diretas, sem muitos rodeios. O exame físico, sem novidades. A checagem dos exames de sangue, tudo certo. A consulta já ia se encaminhando para o final e, num meio-sorriso, ouvi dela: “Sigo aqui com minha vida ordinária, doutora, nada demais.” Sorri de volta, meio sem saber o que responder. A frase de despedida ficou navegando pelo meu cérebro. Uma vida ordinária?
Passei uns dias relembrando (tenho esse velho hábito de revisitar momentos, para o bem ou para o mal). Estava procurando pistas. O que é ordinário me incomoda, me deixa inquieta, como um sinal de problema a ser resolvido. Não havia tristeza detectável no olhar dela, uma sugestão de que sua vida vinha sendo uma sequência de desencontros, decepções e angústias. Pelo contrário, ela um olhar sereno e simples, um ponto de luz no rosto tranquilo. Também não havia ressentimento em sua voz, um átimo de desamparo, uma faísca de frustração incontida. Era uma voz calma, um rio sossegado seguindo seu curso, sem pedras das quais desviar. As mãos, descansadas sobre as coxas, também não me inspiravam tensão ou receio. Tinha os cabelos penteados e limpos, denunciando alguém que acalenta estima por si mesma. As roupas, também. O que havia de ordinário em sua vida?
Ordinário. Me dei conta de que ordinário, para mim, remete à vulgaridade, à canalhice, à falta de caráter, o que sempre me tira um pouco do sério. Mas a Língua Portuguesa sempre brinca com quem dela se enamora. Ordinário é também o que é comum, normal, sem atributos especiais. Uma vida ordinária pode ser uma vida sem sobressaltos, sem emoções intempestivas. Um lago espelhando o céu sem um sopro de vento para lhe encrespar a superfície. Era ela. Ordinária. Suspirei. Em vez de me tranquilizar com a ausência de tragédias e problemas, me angustiei com a falta de perspectivas. Uma vida ordinária me pareceu muito mais indesejável que uma vida turbulenta, ainda que as turbulências possam machucar. Um enxergar-se como uma parte dispensável do mundo, como alguém que não faz qualquer diferença e que não deixará seus rastros quando partir. Senti uma imensa compaixão, um ímpeto de arrancá-la do marasmo e lhe contar o que meus olhos podiam ver.
Busquei na memória nossas conversas anteriores: o carinho com os dois netos; o gato que ela adotou há alguns anos, vítima de violência; o capricho ao fazer bolo de cenoura. Eu queria pistas que a trouxessem de volta, que a restaurassem. Não havia beleza na brincadeira com os netos, na barriguinha bem alimentada do gato, no perfume do bolo de cenoura recém-assado? Havia. Sempre há beleza. Ela se esconde em pequenices, e nossos olhos desaprendem a enxergá-las. Pensei nela muitas vezes nos meses que se arrastaram até o dia do seu retorno. A mulher com a vida ordinária se sentou mais uma vez sem queixas à minha frente. Sim, doutora, estou fazendo caminhadas umas três vezes na semana. Sim, o ginecologista deixou retorno para o ano que vem. Eu melhorei um pouco a alimentação, mas os doces ainda me pegam de jeito. Perguntei sobre sua vida, sobre o que ela gostava de fazer, o que lhe dava alegria. Mais resposta curtas. Nada demais, minha rotina é bem comum, quase todos os dias a mesma coisa.
Dessa vez ela não usou a palavra ordinária, mas descreveu sua vida pacata, a rotina imutável, a ausência completa de planos. Não tinha viagens sendo planejadas, um casamento sendo aguardado, mais um neto por nascer, um projeto saindo do papel. Nada. Um-dia-depois-do-outro, e só. Eu já a estava olhando com uma imensa piedade, imaginando que aquela vida seria quase sinônimo de morte. Para mim, encantada com viagens aventureiras, projetos mirabolantes, curiosa com tudo o que é diferente, apaixonada por entender um pouquinho de tudo, uma vida ordinária não serve. Preferia não vivê-la. Não sei se ela percebeu meu olhar, ou se foi apenas um desses movimentos que o mundo faz quando quer nos ensinar alguma coisa, mas a resposta à minha inquietude veio como um tapa. Acho uma bênção essa vida tranquila que tenho, doutora. Tanta gente por aí sofrendo, não tendo um amanhã para se apegar. Eu sempre tenho o dia seguinte e sei o que esperar dele. Como é bom ter essa paz na vida, né?
Fiquei olhando para ela, sorri (por dentro e por fora). Como é bom ter essa paz na vida. E me dei conta de que a paz de cada um é única. Uma paz que vem do nosso olhar para o mundo. A minha paz, encontro no movimento contínuo. A dela, na ausência de movimento. Quanta beleza temos nessa heterogeneidade humana infinita…




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