Dona Maria de Lourdes é minha paciente há cerca de um ano. Já na faixa dos setenta anos, ela mantém o mesmo olhar que vejo em minha filha, de apenas seis, quando está prestes a aprontar alguma estrepolia. Na verdade, Dona Lourdes também lembra muito a minha filha em sua pequenez: ela tem pouco mais que 1.40 m de altura! Quando chegou, com o diagnóstico de câncer de intestino com metástases no fígado, escondendo sua apreensão atrás de um meio-sorriso, achei que teríamos uma batalha árdua pela frente. A quimioterapia, nesses casos, não é fácil, e idosos muitas vezes não conseguem suportar o tratamento convencional. Para ajudar, Dona Lourdes vinha com o pacote completo: hipertensa, diabética, com arritmia cardíaca, entre outras. A lista de remédios diários era longa… e minha preocupação em tratá-la também.
Mas os meses foram se passando, as sessões de quimioterapia foram sendo superadas, e em poucos meses tínhamos boas notícias para compartilhar: os nódulos no fígado tinham reduzido seu tamanho em mais de 70%. A cada consulta, Dona Lourdes trazia um bombom, acompanhado de um sorriso. E em seguida contava a traquinagem da vez, sob o olhar inconformado da filha mais velha. “Subi na jabuticabeira e levei um tombo essa semana, mas não foi nada, só ficou roxo.” “Fui nadar com o meu neto e esqueci de passar protetor, mas só descascou um pouquinho, até a metade das costas.” “Exagerei um pouquinho na feijoada no sábado passado, acabei indo tomar soro no hospital, mas já estou boa.” E por aí ela ia. A filha me pedia, já desacorçoada, para proibir a mãe de fazer essas loucuras, pois ela deixava a família inteira preocupada, e uma hora aconteceria um acidente sério. Dona Lourdes lançava o seu olharzinho travesso (aquele, de seis anos de idade), dava de ombros e sorria. E o bombom, claro, era mal-intencionado: eu não podia dar bronca depois de ganhar chocolate.
O ano todo foi assim. Quimioterapia após quimioterapia, tomografia após tomografia, travessura após travessura, bombom atrás de bombom. Até que essa semana ela veio sozinha à consulta. Quando perguntei pela filha, ela me confidenciou: “Sabe, doutora, hoje eu vim escondida dela.” Fiquei surpresa com a confissão, e ao ver meus olhos arregalados Dona Lourdes se apressou em explicar.
“Sabe, doutora, eu amo muito a minha filha, ela é minha vida, mas ela não sabe viver não. Às vezes, eu acho que ela pensa que eu vou morrer mais cedo se fizer o que me dá vontade. Ela acha que eu não sei que eu vou morrer dessa doença, e que por causa disso fico assim, feliz. Fica tentando me proteger de mim mesma, não quer que eu exagere, quer que eu seja sensata para, quem sabe, eu durar mais tempo. Mas ela não entende que a nossa vida vai esticando cada vez que a gente faz uma coisa que gosta. Quanto mais eu me faço feliz, mais valiosa é a minha vida, e mais longa ela parece. Esse é o jeito mais fácil de viver pra sempre, entendeu?”
Fiquei olhando para aquela criatura minúscula, pensando como é que cabia tanta lucidez e coragem ali dentro. As palavras dela ficaram ecoando na minha cabeça – e no meu coração – por um longo tempo. Lembrei delas quando cheguei em casa para almoçar e tinha carne moída com batata – que eu AMO – e fiquei feliz. Também lembrei delas quando as minhas filhas pularam de trás da porta para me assustar, e fiquei super-feliz. E quando comi chocolate, no meio da tarde, e quando fui ao banco de chinelos, e quando achei um bilhete brincalhão da minha sócia. E, ao ficar reparando, durante um dia inteiro, nas pequenas felicidades que passaram pela minha vida, senti que o dia tinha durado mais tempo. A minha vida tinha se expandido, de dentro para fora. Do jeito mais fácil que há.
13 de agosto de 2015 às 22:54
Que lindo!
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14 de agosto de 2015 às 06:53
Não é?
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14 de agosto de 2015 às 09:27
Belíssimo ensinamento!!!!! 😀
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14 de agosto de 2015 às 18:53
Tão simples, né, Juliana? Também adorei. A Dona Lourdes é mesmo uma fofa!
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14 de agosto de 2015 às 10:16
Sensacional!!! É o que tenho pensado, ser feliz todo dia! Afinal, se eu viver mais 40 anos, serei feliz 40 anos! E se eu viver 5? Serei feliz 5!!
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14 de agosto de 2015 às 18:53
Rô, se prepara, porque se depender da torcida você vai chegar aos 120 aninhos… rsrsrs Bjo, querida!!!
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16 de agosto de 2015 às 23:14
Iupiiiii!!!! Bjssss
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14 de setembro de 2015 às 10:40
Opa! Ganhei mais uns tempos de vida depois de ler esse texto! Amei Ana! Parabéns pelo dom do cuidar e do escrever!
Beijosss
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17 de setembro de 2015 às 06:56
Que bom, Fernandinha! Fico feliz demais em poder compartilhar coisas boas com vcs! Bjs!
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8 de outubro de 2015 às 02:08
Ana, que delicia de leitura!! Como demoramos a entender a vida. Ainda bem que temos belos exemplos como esse. Bj
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9 de outubro de 2015 às 13:46
Fico muito feliz com comentários como o seu, Mayko! O aprendizado com os pacientes tem um valor impossível de medir! Bjos!
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17 de outubro de 2015 às 22:16
Nossos pacientes tem muito a nos ensinar! Basta abrir o coração…
Obrigada por compartilhar!
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11 de novembro de 2015 às 16:16
Quanta sabedoria da Dona Lourdes “…….nossa vida vai esticando cada vez que a gente faz uma coisa que gosta..” tão simples né!
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11 de novembro de 2015 às 19:37
É mesmo, né, Sil? Ela é realmente uma pessoinha especial! Bjinhos!
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