Muitas vezes me peguei falando sobre a importância de iniciarmos conversas que realmente importem com nossos pacientes. Conversas nas quais eles possam compreender suas opções (mesmo que não existam opções boas) ao mesmo tempo em que se sintam incondicionalmente amparados. Essas costumam ser conversas difíceis para ambos os lados, permeadas por angústias e incertezas (vividas intensamente pelos pacientes e suas famílias), e também pela incômoda e deprimente sensação de estar causando sofrimento a alguém (vivida pelos médicos). Mesmo com treinamento, dificilmente saímos ilesos de uma situação assim, então eu costumo me preparar para isso. Respiro fundo, às vezes faço uma oração, ou mesmo tomo uma xícara de café. Qualquer coisa que concentre meus pensamentos e me fortaleça para começar a tarefa árdua.
Foi assim também com a Maria Emília. Aos 32 anos, com quatro filhas pequenas (a menorzinha tinha apenas 3 anos), ela vinha enfrentando um câncer de mama agressivo, já com metástases nos seus pulmões e nas adrenais, e que não vinha respondendo à quimioterapia. Tínhamos ainda uma opção de tratamento, bastante tóxica e com chance de alguma resposta em apenas 15% dos casos, mas sem nenhuma possibilidade de cura da doença. Um prognóstico sombrio e assustador.
Emília tinha o olhar muito doce, tão doce quanto seu jeito de falar, e isso tornava nossa conversa ainda mais difícil para mim. Comecei relembrando o início da doença, de como vínhamos tentando mudar os esquemas de quimioterapia para controlar seu câncer, e constatando junto com ela o fracasso das nossas estratégias. Ela ouvia serena, complementava minha fala com detalhes que eu tinha esquecido, às vezes sorria de leve. Depois de algum tempo, perguntei se ela compreendia que nossas opções estavam se esgotando. Foram apenas alguns segundos de silêncio até que ela respondesse, a voz firme e calma de sempre:
“Claro que compreendo, doutora, faz tempo que eu sei disso. Eu conheço o meu corpo. Estou vendo que as coisas não vão bem. Mas eu não tenho outra opção, tenho que continuar lutando até quando não tiver mais forças”.
Olhei para ela, meu coração tão apertado quando se pode imaginar. Mas eu tinha que prosseguir.
“Mas, Emília, você não acha que se interrompermos o tratamento, talvez você consiga aproveitar melhor o tempo que você ainda tem para compartilhar com as suas meninas? Sem os efeitos colaterais da quimioterapia, sem ter que vir tantas vezes ao hospital, fazer tantos exames… Não é hora de pensar nas meninas e dedicar seu tempo a elas?”
Emília sorriu, com aquele ar sereno que esconde uma sabedoria ininteligível para nós.
“Doutora, é justamente por elas que eu tenho que lutar. Não para ter mais tempo, porque isso eu sei que não está nas minhas mãos. É para poder ensinar para elas que a gente não deve desistir nunca, nem quando for muito muito difícil, nem quando não tem mais jeito. Eu quero que elas sejam tão fortes quanto eu.”
Dei um grande abraço nela, daqueles que nos aquecem por todos os poros, tamanha minha gratidão por tê-la ali comigo. Gratidão por ver de perto a força do amor de mãe que ela guardava dentro de si, e sua coragem sem limites. Nada de medo, nada de angústia. O que vi em seus olhos foi uma consciência cristalina sobre sua terminalidade e sobre o que ela gostaria de deixar como legado. Vi uma clareza invejável sobre seus valores, sobre as coisas que para ela eram realmente significativas, e pelas quais valia a pena sofrer. Me transportei imediatamente para o lugar dela, pensando no que eu gostaria de significar para minhas próprias filhas. De que forma eu gostaria de ser lembrada? Pela minha força? Minha coragem? Meu carinho? Vi no sorriso de Emília todas as mães do mundo, e me senti tão próxima dela quanto se pode estar de outro ser humano.
Não tem exercício respiratório, oração ou xícara de café que nos prepare para um sentimento assim, que nos conecta de tal forma a outro ser humano que nossa própria vida se expande. Não há o que nos proteja disso. E, pensando bem… quem quer proteção numa hora dessas?
7 de outubro de 2016 às 15:09
Amo este blog! Maravilhoso!
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8 de outubro de 2016 às 12:03
Lindo, lindo! Sempre palavras embebidas de sentimentos e reflexões. Acompanhando sempre com muito carinho. Obrigada por compartilhar conosco Dra. Ana.
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