
Dona Elza* tem hoje perto de setenta anos, e desde que a conheci, quase um ano atrás, ela sempre manteve sua postura tranquila e decidida. Quando teve o diagnóstico de câncer de mama, pediu uns poucos dias ao mastologista e em seguida já marcou a cirurgia. Foi a mesma coisa quando conversei com ela sobre a necessidade de fazer quimioterapia depois da mastectomia, porque seu câncer era de um tipo agressivo (chamamos de triplo negativo) e com alto risco de retornar depois de um tempo: Dona Elza pensou um pouco, tirou suas dúvidas e decidiu que não queria passar por um tratamento como esse. Conversou com o filho e, juntos, tomaram a decisão: ela preferia morrer a receber quimioterapia. Embora esse tipo de decisão do paciente sempre gere certa angústia no oncologista, no caso de Dona Elza eu me senti absolutamente tranquila. Era muito claro que ambos tinham compreendido profundamente os riscos e benefícios potenciais do tratamento, e tinham tomado a decisão que era mais compatível com a vida que Dona Elza estava disposta a viver. Ela preferia viver menos, se fosse o caso, mas viver melhor. E assim foi feito.
Ela vinha me visitar periodicamente, sempre com seus passinhos curtos e inseguros, consequência da cegueira que a acompanhava há vários anos. Dona Elza não consegue enxergar mais que alguns vultos à sua frente, e precisa de ajuda para se locomover fora dos ambientes que lhe são familiares. De resto, estava sempre muito bem, certa de que sua decisão tinha sido acertada. Conversávamos sobre sua vidinha, sobre o tricô (que ela consegue manter, mesmo sem enxergar quase nada!), sobre o cachorro que lhe foi dado de presente pela vizinha. Até que uma tosse, daquelas bem chatas, começou a perturbá-la. Fizemos exames e lá estavam eles: nódulos metastáticos no pulmão. A doença voltara.
O resultado do exame me encheu de tristeza. Embora todos soubéssemos do grande risco, sempre apostamos na possibilidade de termos nos livrado do câncer ali, na mesa do centro cirúrgico. Vê-lo comprometendo os pulmões de Dona Elza foi como receber um “zero” no boletim da escola. Quando a chamei para dar a má notícia, fiquei na porta do consultório observando seus passinhos, já meus velhos conhecidos, e suas mãos apoiando nas paredes do corredor. Ela sorria, e a poucos passos de mim já tirava as mãos das paredes para me dar um abraço. Expliquei para ela e para o filho sobre os resultados, e sobre o fato de estarmos agora diante de uma doença incurável, para a qual a única opção de controle seria a quimioterapia. Passaram-se alguns segundos de silêncio, quebrado pela voz tranquila da Dona Elza:
-O que a senhora sugere, Doutora?
Respirei fundo e disse que meu cérebro de oncologista dizia para insistir na quimioterapia, pois era a única ferramenta disponível para controlar a doença e permitir que ela vivesse um pouco mais de tempo. E em seguida acrescentei que meu coração não concordava com isso, e que pelo que eu conhecia dela me parecia incoerente começar quimioterapia agora, numa situação bem mais desfavorável, se anteriormente ela já tinha recusado o tratamento mesmo com possibilidade de um resultado melhor. Dona Elza sorriu. Na mesma voz tranquila de sempre, respondeu:
-Eu nunca nem vi o seu rosto, e a senhora entende tão bem o jeito que eu funciono… que bom poder contar com a senhora. Não vou fazer quimioterapia não. A senhora cuida de mim, até o dia que Deus achar que eu mereço.
Abracei Dona Elza do jeito que eu abraçava minha avó, com meu coração cheio de amor por ela. É de uma beleza estonteante ver a lucidez com que algumas pessoas administram suas vidas, mantendo clareza e coerência em suas decisões e respeitando profundamente seus próprios valores. Dona Elza é uma dessas pessoas. Ela compreende de forma brutal que temos um tempo finito neste mundo, e que cabe a nós escolher o caminho que desenhará nossa existência. É uma honra sem tamanho conhecer gente assim pelo meu caminho.




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