No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

8 de agosto de 2019
Ana Lucia Coradazzi

3 comments

Nós que temos e podemos

*texto do Dr. Lucas Cantadori, médico hematologista

Não é nada fácil abdicar do tempo com a família para trabalhar por longos períodos. Isso é especialmente válido – e particularmente mais doloroso – aos finais de semana. Durante esses períodos em que estou encarregado de zelar pelos pacientes internados, costumo acordar bem cedo para otimizar meu dia. Por volta das cinco da manhã de sábado já estou de pé. Saio no frio da madrugada para ver meus pacientes, muitas vezes sem disposição para um café da manhã.
Ao redor das 10 horas, já terminando a primeira etapa do dia, a sede me desperta para o fato de ainda estar em jejum. Após um copo de água fresca, vem a fome. A vontade de voltar para casa aumenta.
Na maioria dos dias, às dez e meia todos os pacientes já foram vistos. Posso, assim, voltar pra casa, comer alguma coisa, passar o dia com minha família antes de retornar ao hospital no final da tarde para refazer os passos e checar como todos ficaram. No caminho, penso na minha filha. Tenho um enorme medo de ser um pai ausente, de perder momentos preciosos.
Frio, sede, fome, medo. Isso me é muito familiar. Muitas vezes me esqueço de que basta ligar alguns pontos para que tudo fique mais claro. Mas alguns dias são feitos para me lembrar. Foi o caso de um domingo, quando cheguei no raiar do dia para ver Marta*, portadora de um câncer de mama avançado. Aos quarenta anos de idade, já havendo esgotado todas as possibilidades terapêuticas, Marta estava passando pelos últimos dias de sua breve vida. A doença havia migrado para seu fígado, que agora degenerava em uma falência progressiva. Não sabíamos, mas este seria seu último dia de vida. Nesse mesmo horário na segunda-feira, eu preencheria seu atestado de óbito e o entregaria para seu marido, oferecendo meus sentimentos e condolências.
Entrei no quarto e vi Marta deitada, dormindo. Na realidade, estava profundamente sedada com a administração contínua de medicações, necessárias para o alívio das dores e da agitação causadas pela insuficiência hepática. Ao seu lado, sentado em uma fria cadeira de hospital, com as mãos unidas em oração, estava seu pai. Com o olhar fixo na filha, talvez embalado na cadência de seus movimentos respiratórios, não percebeu minha chegada. Contemplei-o por um breve momento antes de chamá-lo, durante o qual tentei imaginar – “esboçar” seria uma palavra melhor – o tamanho do seu desespero; e de que forma estaria pedindo a Deus um milagre. Certamente oferecia mil vezes sua vida em troca.
Examinei Marta e garanti que todas as medidas haviam sido tomadas para que o final de sua vida transcorresse sem dor, sem sofrimento, ao menos por parte dela. Conversei com seu pai e esclareci todas as dúvidas. Quando perguntado se havia alguma chance de ela sobreviver, mesmo com a máxima empatia que exerço, tive de responder com a mais dura sinceridade científica, ainda que internamente eu também torcesse por um milagre divino.
Segui para os demais pacientes e – ainda com ela em mente – voltei pra casa e almocei com minha família. À tarde, andei de bicicleta com minha filha de um ano e meio na cadeirinha. Paramos sob uma árvore e jogamos bola. Como aproveitei e gravei na memória cada detalhe daqueles momentos…
No final do dia voltei ao hospital. Logo na entrada encontrei o marido de Marta, interpelando-me acerca de algo que havíamos combinado no dia anterior. Ele trouxe seu filho de 5 anos para passar uns minutos com a mãe.
Entramos juntos no quarto. Enquanto a criança brincava no sofá, conversamos sobre o quadro atual e as perspectivas para as próximas horas. Sedada, ela parecia dormir calmamente.
– Papai, a mamãe está dormindo?
– Sim, filho. E está na hora de irmos embora. Dê um beijo e diga tchau.
Vejo então o menino subir na cadeira, beijar carinhosamente a bochecha da mãe, passar a mãozinha no seu cabelo e sussurrar “tchau, mamãe”.
Saindo do quarto o marido agradeceu por tudo correr conforme o que havíamos combinado. Quando crescer, o filho saberá que – mesmo sem entender o que estava ocorrendo – se despediu da mãe com um beijo e um adeus. No dia seguinte, ele saberia que sua mãe se tornara uma linda estrela no céu, das mais brilhantes. Mas não hoje. Hoje sua mãe dormia, seu avô rezava e seu pai cuidava de tudo.
Saí do hospital pensando que eu não teria nunca o direito de reclamar de qualquer coisa, diante do quão pequenos meus problemas eram. Como posso pedir algo a Deus que mereça mais sua atenção do que o pedido do pai de Marta?
Mais uma vez os pontos se ligaram quando me lembrei da oração que declamei muitas vezes enquanto trabalhava nas forças armadas. À época, a Oração do Guerreiro não tinha significado para mim. Hoje faz todo sentido.

Oração do Guerreiro
Senhor, dai-me apenas aquilo que vos resta
Dai-me a fome,
Dai-me o frio,
Dai-me o sede,
Dai-me o medo,
Mas dai-me, Senhor, acima de tudo
A fé,
A força,
A coragem,
E a vontade de vencer.
Uns tem mas não podem,
Outros podem mas não tem.
Nós que temos e podemos,
Agradecemos ao Senhor.

*Nome fictício para preservar a privacidade da paciente

3 comentários sobre “Nós que temos e podemos

  1. Oi Dr Lucas … Texto maravilhoso . Como disse sua mãe , porém triste . Sou o tio do Roni e quero desejar – lhe muito mais força e sabedoria , que. Deus ilumine sempre seu caminho e seja sempre esse médico dedicado aos seus pacientes … GD abraço

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  2. Estou extremamente tocada!
    Quantas reflexões posso fazer através desse texto.
    Mais uma vez, muito obrigada por compartilhar!!!

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  3. Que Deus abençoe todos os médicos, principalmente os dedicados e humanos, estes senhor Jesus que cuida desta doença ingrata

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