No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

25 de dezembro de 2019
Ana Lucia Coradazzi

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O pássaro pousado no dedo

“Amar é ter um pássaro pousado no dedo.” Rubem Alves era um mestre em descrever as experiências humanas mais presentes em nossas vidas cotidianas… inclusive o amor. Posso imaginá-lo contemplando, fascinado, um pássaro pousado no dedo estendido, a cabecinha virando nervosamente de um lado para o outro, procurando seu próximo pouso. O dono do dedo, claro, ansioso por manter-se imóvel, garantindo um local confortável para que seu pássaro não tenha motivos para partir. Mas é da natureza dos pássaros bater as asas, como é da natureza humana se despedir um dia. Quem tem um pássaro no dedo sabe que ele não ficará ali para sempre, por maior que seja o conforto, por mais sublime que seja o amor.

Foi o pássaro alçando vôo que me veio à mente quando Dona Telma* partiu. Tinham sido mais de quarenta anos de casamento, nem sempre feliz, com Seu Ary*. Os momentos felizes, ela dizia, tinham sido muitos, mas já não aconteciam mais com tanta frequência. A situação financeira vinha se complicando, o relacionamento com os filhos era uma montanha-russa, o futuro parecia cada dia mais incerto. Mas Dona Telma nunca tinha dúvidas quando se tratava de escolher um lado em qualquer situação: o lado do marido. Suas escolhas lhe custaram muito. Custaram, inclusive, o contato com seus filhos e o convívio com os netos. Ela compreendia o temperamento teimoso de Seu Ary, e se via no papel essencial de apoiadora do homem que escolheu para dividir sua vida. Apesar da tristeza (que mantinha trancafiada no fundo de seu coração), Dona Telma não se arrependia. Ele, por sua vez, enxergava com gratidão as renúncias dela, e se esforçava para oferecer-lhe a melhor vida que podia. Dona Telma era o belo pássaro pousado em seu dedo.

Quando o câncer de mama dela retornou nos ossos, os esforços de Seu Ary foram redobrados. Já aposentado, ele passava todas as horas do seu longo dia organizando a vida dela. Era rara a semana em que ele não entrava em contato conosco. Tirava dúvidas, renovava as receitas, pedia sugestões sobre como cuidar dela melhor. Batia ponto na farmácia e no mercado, conhecia todos os tortuosos caminhos para conseguir as medicações do convênio médico. Cozinhava ele próprio o jantar, estimulava a esposa a sair pelo menos um pouco da cama, organizava os remédios. Seu Ary vivia por ela.

Conforme a doença foi se agravando, a presença de Dona Telma ao consultório começou a ficar penosa. Ele então ia sozinho às consultas, me contava como ela estava, falava sobre as medicações. Algumas vezes, quando a angústia apertava no peito, Seu Ary se permitia abrir o coração. Falava dos seus esforços em preparar-se para a partida dela, das noites mal dormidas quando ela parecia estar desconfortável (e não o chamava para não incomodar), da dificuldade dos dois em conversar sobre a doença. Às vezes, Seu Ary chorava. Chorava de saudades da mulher que ela tinha sido, e da dor por vê-la sofrer no final da vida. Chorava por se sentir impotente, por não conseguir oferecer a ela uma vida à altura das renúncias que ela tinha feito. Às vezes, chorava de remorso, culpando-se amargamente por tê-la afastado dos filhos e dos netos. Mas desconfio que Seu Ary chorava, mesmo, por sentir seus dedos cada vez mais leves, com seu pássaro prestes a voar para longe dali.

Quando Dona Telma piorou a ponto de não ser mais possível cuidar dela em casa, ele me pediu que a internasse para que ela tivesse mais conforto. Ele parecia mais tranquilo durante os dias da internação. Embora mal saísse do quarto e se alimentasse muito pouco, parecia se sentir aliviado. Talvez sua abnegação nos dias finais dela fosse a forma que ele tinha encontrado para retribuí-la. Agora, mesmo quando chorava, Seu Ary parecia em paz. Na madrugada em que ela se foi, ironicamente, Seu Ary não estava lá. Por insistência da nora, ele tinha ido dormir em casa por algumas horas. Ela se foi assim, em silêncio, resignada, em paz.

Alguns dias depois, Seu Ary apareceu no consultório. Abatido, os olhos vermelhos, o olhar desolado que já vi tantas vezes em familiares enlutados. Começou a chorar antes mesmo de eu fechar a porta, e eu pude sentir seus soluços pulsando quando o abracei. Foram alguns segundos em silêncio antes das suas primeiras palavras: “O que vou fazer sem ela, doutora? O que vou fazer sem ela?” Minha resposta foi outro abraço apertado. Não há respostas à altura desta pergunta. Depois de mais algum tempo, ele conseguiu falar um pouco. Agradeceu. Não pelo cuidado médico, ou mesmo pelo meu cuidado pessoal com ela. Seu Ary se sentia grato por ter conseguido retribuir, mesmo que minimamente, os sacrifícios da esposa. Ele me via no papel de facilitadora deste processo. Às vezes, a ciência nos serve tão pouco…

Seu Ary me deixou ali, em pé ao lado da mesa, absorta nos meus pensamentos. Imaginei seus dias, chegando em sua casa solitária, com a agenda de compromissos repentinamente vazia, e o coração ardendo de saudades. Ele então se sentaria, desoladamente, com o olhar perdido, talvez mirando o próprio dedo vazio. Sem pássaro, sem amor, sem nada.

Talvez tenha sido uma cena assim que Rubem Alves imaginou quando escreveu sobre o amor, os pássaros e as despedidas. Talvez seja isso o que fica: a sensação de que todo o esforço para manter o dedo estendido tenha, afinal, valido a pena, mesmo que o pássaro precise sair voando para nunca mais voltar. É da natureza dos pássaros bater as asas. É da natureza humana amá-los até que isso aconteça.

*os nomes da paciente e do esposo foram trocados para preservar sua privacidade.

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