Os corredores andam mais vazios ultimamente… Aquele ambiente de entra-e-sai, de vai-e-vem, de abre-e-fecha tem ficado encolhido com o distanciamento social imposto pela pandemia. Poucos meses atrás, encontrávamos todo mundo por ali. Colegas médicos para discutir casos, enfermeiros para passar alguma informação importante, a equipe da farmácia, a da faxina, a assistente social. Bastava andar pelo corredor por alguns poucos minutos para cruzar com quem quiséssemos para resolver um problema ou trocar uma ideia. Mas acho que o mais gostoso do corredor é cruzar, o tempo todo, com nossos próprios pacientes. E esses continuam por lá.
Às vezes, o encontro com eles se concretiza apenas pela troca de olhares. Em outros momentos, um sorriso dá o ar de sua graça. “Bom dia, doutora!”, e um aceno de cabeça. “Bom dia, Seu Mário!”, aceno devolvido. No corredor a gente os vê de outro jeito, diferente de como são no consultório, restritos pelas paredes e atentos ao médico que está falando. No corredor eles são eles mesmos. Um senhor se encosta no ombro da filha, apoiando a cabeça cansada, enquanto aguardam o chamado para a quimioterapia. Um outro, um pouco mais novo, mata avidamente a própria fome, enlaçando os talheres de plástico com os dedos e amassando a marmita de alumínio recheada, dividindo com o filho cada pedacinho de carne. Uma senhora se preocupa com os farelos que o marido deixa cair no chão, catando cada migalhinha num guardanapo de papel para jogar no lixo ali em frente. E ali, logo ao lado do lixo, um filho se apressa em arrumar a meia da mãe, que estava enrolada no tornozelo, deixando a pele dela exposta ao frio. No corredor, vínculos de afeto se espalham por cada palmo do chão.
No corredor tem uma solidariedade que não tem tamanho. Tem a moça de pouco mais de trinta anos, lencinho na cabeça, acalmando a paciente ao lado, que enfrentaria sua primeira sessão de quimioterapia. “Fica tranquila, não é nenhum bicho-de-sete-cabeças.” Tem o senhor simplório, sem os dois dentes da frente, oferecendo um limão ao outro porque “se puser ele no nariz, você não sente o cheiro da ‘química’, aí o estômago não ‘embruia’ muito.” Tem a mãe da menina magrelinha, em tratamento de leucemia, que oferece à outra mãe dois pacotes de bolacha. “Para o caso de vocês sentirem fome no caminho para casa.” No corredor sempre tem alguém para ajudar você.
Lá também tem tristeza. Tem a esposa chorando abraçada com o marido, depois de uma conversa tão difícil com o médico que dava para ouvir seu coração se partindo. Tem o senhor magrinho na maca, alheio ao mundo por causa de um grave tumor cerebral, sem poder entender de quem são as mãos afagando as suas. E tem também a filha dele, dona das mãos carinhosas, e seu olhar perdido que não consegue mais encontrar os olhos do pai. No corredor, a tristeza se senta sem constrangimento pelas cadeiras, sem nem pedir licença.
Mas é ali, andando com nossos passos quase sempre apressados, que somos chamados à realidade, e nos lembramos das pessoas por trás das doenças. É ali que vemos a realidade única de cada um que passa pelos nossos consultórios, em toda a sua dor e com toda a sua força. Eles ganham colorido, seja em cores leves e vibrantes, ou em tons tristes e cinzentos. Mas invisíveis eles nunca ficam. Eles nos olham ao passarmos, e não há como ficar indiferente aos seus olhares. E enquanto vamos nos afastando, já escutando o eco dos nossos próprios passos, sentimos os tais olhares por trás de nós, cheios de admiração, de respeito, de esperança, de gratidão. Às vezes, ouvimos uma voz ecoando atrás de nós. “Olha lá, filha, aquela é a minha doutora.” Outras vezes, é apenas um sussurro. “Shhhh, olha a médica aí.” Mas não se sai ileso dali. O corredor nos obriga a prestar atenção em nossos próprios passos. Não os que fazem barulho no chão, mas os que percorremos na vida.
8 de julho de 2020 às 00:57
Como sempre, reflexão e textos primorosos!
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8 de julho de 2020 às 06:45
Obrigada, Vanusa! Refletir é vital. Bjssss
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8 de julho de 2020 às 09:11
Incrível como você escreve bem.
Dá para usar os “posts” para votar para o Prêmio Jabuti?
Que Dráuzio Varella o quê! Para mim, Ana Coradazzi é a melhor escritora.
Saudades de você!
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13 de agosto de 2020 às 20:24
rsrsrs Muuuuitas saudades de vc, meu amigo!!!
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8 de julho de 2020 às 09:25
Adorei!!!
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8 de julho de 2020 às 09:31
Maravilhosas suas palavras!
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8 de julho de 2020 às 18:48
Gosto muito dos seus textos! Sempre me levam a boas reflexões.
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9 de julho de 2020 às 02:51
Meu Deus cada texto seu que leio tem a mesma sintonia do dia que falou comigo sobre a Fernanda…entre palavras durasque tem que serem dietas.. tem um acalento que vem do seu coração….te adoro pra sempre Doutora..no no coração
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9 de julho de 2020 às 21:37
Lindo texto! Emocionante ler sobre o que também vejo, ouço e sinto todos os dias no Hospital e isso me fez refletir, como são especiais esses momentos únicos! Amei! Parabéns Dra Ana Lúcia!
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17 de julho de 2020 às 14:13
TEXTO MARAVILHOSO, EXTREMAMENTE SENSÍVEL E VERDADEIRO
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