Cadeados que ninguém vê

Todas as vezes em que ela me falava do marido era a mesma coisa: palavras um tanto evasivas, olhar fugidio, sorriso meio constrangido, pressa para terminar as frases. Eu não insistia. Cada um tem seu tempo, seus processos, e invadir o momento dela não estava nos meus planos. Guardei minhas impressões para mim. Na época eu ainda sabia muito pouco sobre as pequenas violências de todos os dias. Demorei a perceber o que os sinais do corpo dela já me contavam há tempos.

Os meses se arrastaram, o tratamento oncológico foi cruel com ela. Eram tantos efeitos colaterais que cheguei a propor a interrupção definitiva da quimioterapia. Ela não quis. Disse que já tinha suportado coisa pior. Que não era de desistir de nada. Que todo sofrimento um dia termina. Seguimos. Ele, o marido, nas raras vezes em que a acompanhava, me parecia preocupado e dedicado, sabia tudo sobre a doença e o tratamento, mostrava artigos da internet sobre a doença dela. Era educado e agradável, a fala carinhosa. Eu tardei a perceber o movimento rápido, mínimo, quase inexistente, das mãos dela em fuga quando ele as tocava. Mas um dia eu vi. Um tremor. Um átimo de movimento. Olhei para ela, ela desviou o olhar.

Há muito tempo aprendi a confiar nos meus instintos, principalmente no que diz respeito às mulheres. Comecei a reparar no comportamento dela, que mudava completamente na ausência do marido. Longe dele, ela sorria, falava da filha adolescente, chegou a me contar da vontade de fazer uma nova faculdade. Na presença do marido, nada. Ela se transformava num relatório bem detalhado de sintomas e medicamentos e dúvidas técnicas, encurtando o tempo da consulta ao máximo. Seu corpo também me dizia coisas. As mãos entrelaçadas entre os joelhos, a saia sempre esticada até onde lhe cobrisse bem as pernas, o sorriso frouxo e pouco convincente, ombros debruçados sobre o peito. A intraquilidade mal disfarçada. Um corpo bem diferente de quando ela vinha sozinha às consultas, quando apoiava as mãos na minha mesa e falava sobre a vida.

Um dia estávamos conversando sobre atividades físicas e, num lapso, ela disse: “Na academia não posso ir, o Marcos* não deixa”. Um silêncio desconfortável se instalou entre nós. Por um milésimo de segundo não perdi a chance. Antes que ela mudasse de assunto, fui direta: “Lígia*, você quer me falar alguma coisa sobre a sua relação com o Marcos?” Ela pareceu assustada, ou constrangida, mas mantive o olhar firme. Ela começou seu relato muito devagar, pisando leve nesse terreno pantanoso que se abria sob seus pés. “Não é nada demais, coisa de casal que está junto há muito tempo.” “É o jeito dele, sempre foi meio assim. Eu achava até bonito os ciúmes dele, me protegia e me envaidecia.” Aos poucos, o pântano sob ela foi se tornando um terreno seguro, e Lígia começou a falar.

Quando começaram a namorar, ambos vinham de longos relacionamentos que terminaram traumaticamente, o dela por uma traição do parceiro, o dele porque a ex-mulher era “desequilibrada”. Em poucos meses, apaixonaram-se, noivaram e se casaram, e em menos de um ano Luana* nasceu. E nasceu também um outro Marcos. Ele se ressentia do tempo que Lígia dedicava à filha recém-nascida. Depois sugeriu que ela não voltasse a trabalhar após a licença, porque se voltasse o tempo para ele seria ainda mais restrito. Aos poucos, sua vida começou a girar em torno dele e da filha. Visitava a mãe apenas esporadicamente, falava pouco com as amigas. Marcos elogiava sua dedicação. Valorizava a casa impecavelmente arrumada, a comida bem-feita na mesa, a roupa passada à perfeição. Não economizava declarações de amor, inclusive publicamente, e dizia estar completamente nas mãos da mulher, que seu coração era um escravo do amor. Mas esse amor tão grande parecia se dissolver quando estavam a sós. Era nos detalhes que Marcos se revelava. A fala ríspida que escorregava para debaixo da mesa de jantar. O tom de voz que estremecia os dedos, assim, sem explicação lógica. As críticas disfarçadas de elogios, todos os dias, o tempo todo. Às vezes, uma frase inacabada: “Desse jeito vou ter que me virar por aí, amor…” Ameaças que Lígia capturava no ar, sentia seu cheiro doloroso. Seu medo torturava seus dias sem que ela se desse conta. Porque eram pequenos, mas também contínuos e eternos. As discussões entre eles não eram frequentes, na verdade era raro que Marcos perdesse o controle. E justamente por isso era tão difícil para Lígia perceber a submissão, era um processo sutil. Como explicar para a mãe que Marcos a deixava desconfortável, se ele se mostrava tão carinhoso e dedicado no almoço de domingo? Como contar para uma amiga sobre sua sensação de estar sendo violentada, se nem uma única vez o marido a agredira fisicamente? Aos poucos, Lígia se convenceu de que estava sendo ingrata com a vida. Que não tinha do que reclamar. Que marido bom é marido presente. E Marcos era presente, até demais.

Quando o diagnóstico de câncer veio, Lígia viu uma possibilidade de transformar sua vida. Marcos baixou a guarda. Parecia mais compreensivo, mais carinhoso. Aceitava de bom grado a presença da sogra na casa deles para ajudar. Implicava menos com as amigas de Lígia, e até incentivava o convívio com elas. Foi assim nos dias que se sucederam à cirurgia da mama, e também nas primeiras sessões da quimioterapia. Um sopro de alívio parecia ter envolvido a casa, e Lígia chegou a agradecer a oportunidade de ter o diagnóstico de câncer. Até que complicações da quimioterapia começaram a aparecer.

As náuseas. O ganho de peso. Finalmente, a queda dos cabelos. Marcos chegou em casa no momento exato em que uma amiga estava terminando de raspar a cabeça de Lígia, para evitar o incômodo imenso dos fios sendo encontrados por todos os cantos. Marcos se enfureceu. Expulsou a amiga imediatamente, e seguiram-se horas de insultos relacionados à aparência de Lígia. Ele a acusava de estar sabotando o relacionamento deles. Dizia que ela o tinha enganado, que ele tinha se casado com uma mulher saudável e bonita, e agora era obrigado a conviver com “aquilo”. Lígia, magoada e humilhada, não respondeu. E também não dormiu. E não conseguiu comer. No dia seguinte ele saiu cedo para trabalhar, e ela estava decidida a partir. Ela estava arrumando sua mala e a de Luana para ir para a casa da mãe quando as flores chegaram. Um buquê imenso das suas rosas preferidas, e um bilhete de Marcos pedindo desculpas pela noite anterior. Ele dizia que a amava e que ficava louco por vê-la passar por tudo aquilo. Que seria o melhor marido do mundo dali em diante. Lígia suspirou e começou a desfazer as malas. Mas, no fundo do peito, preferia não ter recebido buquê nenhum.

Desde esse dia, Marcos vinha se esforçando para acompanhá-la em tudo. Para quem os visse de fora, eram a imagem de um casal unido pelo amor. As palavras eram sempre carinhosas e de apoio, mas Lígia sentia o medo incômodo da presença dele. Suas frases a feriam mesmo quando eram pretensamente elogiosas. “Quando você voltar ao normal tudo vai melhorar.” “É difícil lidar com a careca, mas ainda bem que cabelo cresce.” “Esses quilinhos a mais aqui logo vão embora, ainda bem, é duro ver você tão descuidada.” “A casa está uma bagunça, mas logo o tratamento acaba e nós voltamos a viver num lugar decente.” Lígia só conseguia pensar que, sem um corpo perfeito e uma disposição inabalável para cuidar da casa e da filha, ela não valia nada. E se convenceu disso.

Foi um relato duro de ouvir. Eu olhava para ela, sua fragilidade derramada sobre a mesa do consultório, e meu desejo era juntar todos os seus cacos e ajudá-la a colá-los, um a um, para reconstruir a vida que o marido vinha sistematicamente aniquilando. Queria que ela se visse pelos meus olhos: a mulher corajosa, bonita e capaz. A mãe incrível que ela era. Queria indicar outras direções possíveis para sua vida, mostrar as possibilidades que seu medo a impedia de ver. Queria devolver a ela o amor próprio roubado. Queria arrancá-la da vida que vinha consumindo suas energias de forma tão velada e cruel. Mas eu sabia que tudo isso era um processo longo e difícil, que não se resolveria ali, com meia dúzia de palavras de suporte. Falar sobre o que vinha acontecendo já era um passo grande o suficiente para aquele dia. Dei a volta na mesa, me sentei ao seu lado e a abracei. Lígia chorou. Pouco. Um choro de dor, um choro de alívio. Ouvir a si mesma contando sua história tinha lhe permitido enxergar o tamanho do problema. “O câncer eu resolvo, Ana. Vai passar, eu consigo. O resto é que não sei se posso.” Sua dor doeu em mim.

Ficamos algum tempo em silêncio, deixando tudo aquilo escorrer dela. Lígia agora não estava mais sozinha.

*nomes fictícios para preservar a identidade das pessoas

3 respostas para “Cadeados que ninguém vê”.

  1. Que relato incrível Dra.Ana! E quantas mulheres são submissas a esses homens horríveis que só pensam neles mesmos e nos seus prazeres! Vou mandar boas energias para essa mulher incrível, vencer essa doença e dar realmente a volta por cima e ser feliz!!!

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    1. Avatar de Ana Lucia Coradazzi
      Ana Lucia Coradazzi

      Que ela receba MUITAS energias, sempre. Ela é maravilhosa.

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  2. Avatar de SYLVANA SHEYLA FERNANDES DE CASTRO
    SYLVANA SHEYLA FERNANDES DE CASTRO

    Que Deus a ilumine, Dra. Ana, a continuar ajudando tantas pessoas com sua sensibilidade e amor pelo ser humano ! Que Deus proteja essa pessoa *Ligia, que passa por essa dor imensa!

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sobre mim

Sou Ana Coradazzi, médica oncologista clínica e paliativista. Apaixonada desde sempre pela escrita e seu impacto na vida das pessoas, decidi transformar as inúmeras experiências valiosas com pacientes oncológicos em histórias, que divido aqui com todos vocês.

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