O ambulatório estava bem cheio naquele dia. Não havia mais cadeiras vagas e algumas macas com pacientes tornavam o corredor intransitável. Quando isso acontece, percebemos que a ansiedade e a impaciência dos pacientes e familiares sempre aumenta, assim como aumentam as chances de ouvirmos reclamações, desabafos e descontentamentos, tanto dentro do consultório quanto no próprio corredor. Paradoxalmente, quanto maior o tempo de espera pela consulta médica, maior o tempo necessário para a própria consulta, pois o estresse experimentado enquanto o paciente aguardava sua vez aumenta sua percepção das próprias queixas e exige mais tempo do médico para resolvê-las. Ou seja, é um cenário propício para o caos.
Dona Chica estava sentada bem em frente à porta do consultório. Usava meias de lã enroscadas nos chinelos de dedo e uma saia cobrindo os joelhos, e mantinha sua inseparável sacola marrom no colo. Cada vez que eu abria a porta para chamar o próximo paciente, ela sorria, deixando à mostra a falta dos dois dentes da frente. Ao lado dela estava sentada uma moça visivelmente nervosa. Era a primeira vez que trazia o pai ao nosso ambulatório, não conhecia ninguém por ali. O pai, numa das macas, dormia tranquilo, sem saber o que acontecia ao seu redor. Após algum tempo de espera, a moça começou a comentar sobre a demora, em tom irritado. Eu ouvia, de dentro do consultório, as palavras indignadas dela, inconformada com a longa espera. Normalmente as famílias que começam a ficar ansiosas não conseguem reverter a irritação, pelo contrário: o desconforto só aumenta e a consulta acaba sendo desgastante e difícil. Eu já vinha até me preparando para isso desde que comecei a ouvir as reclamações no corredor. Abri a porta para chamar a próxima paciente, que era a Dona Chica. Ao ouvir seu nome, ela se voltou para a moça ao seu lado e disse, com seu sorriso desdentado: “Pode ir na minha frente, moça. O seu pai está mais precisado do que eu.” A moça ficou sem graça, tentou recusar, mas o sorriso da Dona Chica não permitiu a recusa. Atendi ao pai dela, numa consulta tranquila, que terminou com a moça visivelmente aliviada. A gentileza da Dona Chica tinha feito sua mágica.
Algum tempo depois, foi a vez da consulta da própria Dona Chica. Aproveitei para agradecer e elogiar a atitude dela, que tinha transformado a atitude daquela moça e tornado a vida dela menos difícil, mesmo que por apenas alguns instantes. Um novo sorriso e os olhos envergonhados, essas foram as respostas dela. Ao sair, uma funcionária veio entregar uns bombons para a Dona Chica, dizendo que a moça nervosa tinha deixado para ela. E o sorriso dela ficou ainda maior que o de costume, invadindo seus olhinhos e, certamente, seu coração.
Fiquei pensando no poder da atitude da Dona Chica naquele dia. Com um ato simples que não lhe custou mais que alguns minutos, ela foi capaz de transformar o estado de espírito de uma pessoa, facilitando assim tanto a vida da moça quanto a minha. Com uma pequena gentileza, ela desarmou a irritação, o medo, a ansiedade e o desespero. Ela influenciou não somente a moça que recebeu seu ato, mas todos os que estavam na sala de espera, que assistiram a cena e sentiram seus corações acalentados. Dona Chica mostrou, da forma mais clara e indiscutível que existe, porque é que vale a pena acreditar nos seres humanos. Gentileza é artigo raro nesse mundo, mas ainda pode ser encontrada e aprendida. Em alguns lugares e situações, é tão incomum que é interpretada quase que como um pequeno milagre, mas seu impacto não tem nada de milagroso. Observar alguém sendo gentil simplesmente extrai o que temos de melhor dentro de nós. Um ato de gentileza é assim tão poderoso porque sempre gera mais gentileza. Às vezes, gera até chocolate.
24 de junho de 2015 às 22:42
Belo texto .. Provavelmente D Chica está em uma dimensão além de um simples ato de gentileza . Abraços
CurtirCurtir
25 de junho de 2015 às 07:01
Também acho, Nubia! Conviver com essas pessoas diariamente é um aprendizado que vai bem além do convencional. Obrigada! Abraços pra vc também!
CurtirCurtir
16 de julho de 2015 às 10:33
Precisamos de muitas Dona Chicas para o mundo. E pessoas como você que veem essas atitudes. Mas eu acredito muito, que essas pequenas e tão simples atitudes, mudam muita gente. Parabéns à Dona Chica.
CurtirCurtir
17 de julho de 2015 às 10:17
Concordo PLENAMENTE. Gentileza é a forma mais eficiente que eu conheço de se conectar a pessoas e tornar o mundo melhor. Bjos, querida!!!
CurtirCurtir