No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

14 de abril de 2016
Ana Lucia Coradazzi

15 comments

Obrigado por tudo, doutor*

*texto escrito pelo colega hematologista Lucas Cantadori, da Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP (uma grande lição de vida)

Não costumo fazer isso, mas quero compartilhar essa pequena história sobre um querido paciente. Nomes não são necessários…
Enquanto o via saindo do consultório médico com dificuldade, não pude deixar de relembrar nosso primeiro encontro, já nos seus 80 e poucos anos, me encarando com uma serenidade perturbadora enquanto ouvia o veredito sobre seu diagnóstico e possibilidades terapêuticas.
Linfoma Difuso de Grandes Células B avançado, doença grave, porém com chance de cura mesmo nessa faixa etária.
Mas era um câncer – “maligno” – a “certeza da morte”. Pelo menos era o que ele pensava.
“-Doutor, eu tive uma vida muito boa, justa, honrada, não tenho do que reclamar. Minha alegria é passar os dias com minha família, cuidar das minhas parreiras e beber meu vinho. Não quero fazer nenhum tratamento que possa me privar desses momentos.”
Depois de uma longa conversa – incluindo garantias de que não abdicaria de suas tarefas diárias – ele decidiu tentar, ao menos 1 ciclo de quimioterapia.
Voltou 2 semanas depois, mais disposto, feliz com o desaparecimento das adenomegalias. Sempre afirmando, com toda a educação que lhe era peculiar:
“-O doutor sabe que continuo cuidando das parreiras e tomando meu vinho, né? Só para avisar…”
Completou os 8 ciclos sem nenhuma intercorrência, com excelente qualidade de vida, obtendo resposta completa ao tratamento. Remissão.
“-Obrigado por me orientar a fazer o tratamento. Pretendo aproveitar ao máximo o tempo que ganhei”.
Dois anos se passaram, bisnetos nasceram, as parreiras renderam algumas safras. Era a vida sendo aproveitada.
Mas infelizmente a doença recidivou. Lembro de vê-lo entrando no consultório, sempre acompanhado por sua esposa, com uma massa cervical de progressão rápida na última semana. Novos exames confirmaram o retorno da doença.
Expliquei sobre o prognóstico e a possibilidade de um tratamento de segunda linha. Nos seus olhos eu via serenidade, resiliência e gratidão. Sim, gratidão que ele sempre fazia questão de verbalizar.
“- …pelo atendimento, por toda a atenção, por toda a preocupação e carinho que você e todos aqui tem comigo.”
Mas dessa vez a quimioterapia foi difícil. Ele sofria com os efeitos colaterais, começava a ter dificuldades para executar suas tarefas. Estava claro que a doença resistia. E ele sabia:
“-Doutor, venha almoçar conosco um dia desses. Quero lhe mostrar minhas parreiras. Ainda consigo cuidar delas, com dificuldade. Este ano estão especialmente lindas, como se estivessem se despedindo de mim.”
Não consegui arranjar tempo para aceitar o convite, algo pelo qual me arrependo.
Alguns meses depois, suspendi a quimioterapia devido a progressão da doença. A radioterapia conseguiu resolver a dor e os sintomas compressivos.
Conversávamos muito durante as consultas. Ele me explicava sobre os sintomas e o impacto no dia a dia, suas dificuldades e suas expectativas. E conjuntamente trabalhávamos todos esses aspectos.
Ganhei uma caixa de uvas deliciosas!
E assim algumas semanas se passaram. Até que o vejo inesperadamente no corredor do ambulatório, fora do dia habitual de suas consultas. Veio para avaliação extra.
Emagrecido, amparado por sua esposa, muito pálido e cansado. Estava claro que seu organismo caminhava rumo ao colapso. Pensei: “Vou colher alguns exames agora, hidratá-lo; certamente precisará de uma transfusão. Melhor pedir leito para internação, assim talvez eu consiga compensá-lo”.
O olhar era o mesmo, sereno.
“-Sei o que está pensando, doutor. Mas depois de tudo o que passamos, também sei que você não vai me privar do que é precioso para mim. Não quero colher exames. Não quero receber soro. Não quero transfusão. Não quero ficar internado. Hoje eu saí da minha cidade e vim até aqui para agradecê-lo. Eu tive mais tempo, eu vi meus bisnetos nascerem. Obrigado por tudo”.
O vi pela última vez saindo do meu consultório, gigante em sua dignidade.
Cerca de 1 semana depois, recebi uma ligação da esposa:
“-Ele faleceu em paz, na nossa cama, segurando minha mão e cercado por seus filhos e netos.”
Eu costumava ver a luta contra o câncer de uma forma dicotômica. Era o bem contra mal. A vitória ou a derrota.
Um visão simplista e superficial de uma jornada repleta de coragem, escolhas, engrandecimento e aprendizado.
Cada um deve interpretar essa história da forma que quiser.
Eu continuo aprendendo…

15 comentários sobre “Obrigado por tudo, doutor*

  1. Esse texto me lembra a célebre frase do grande Papa São João XXIII antes de morrer: “minhas malas estão prontas, já posso partir”.
    Que felicidade ir de encontro com a eternidade com a certeza do dever cumprido.
    Tantas pessoas partem sem ter acrescentado nada, sem deixar um legado, uma boa ação sequer.
    Não tenho dúvidas que as uvas desse senhor eram as mais doces e saborosas do mundo…

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  2. Que dignidade ,meu marido morreu no hospital Paliativo de Barretos e posso dizer que foi uma morte digna em paz ao lado dos. Familiares ,parabéns vocês médicos que trabalham com cuidados paliativos .

    Curtido por 1 pessoa

  3. Agradeço a Dr Marina do hospital paliativo São Lucas de Barretos pelo carinho com meu marido e com a família .

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  4. Parabéns que linda história…

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  5. Lindo texto emocionante….não tenho palavras para descrever o quanto sou grata a essa equipe Oncomed Botucatu, profissionais que trabalham com respeito e amor.
    Ao dr Lucas Cantadori….anjo enviado por Deus para cuidar das pessoas num momento delicado.
    Meu muito obrigada.
    Andrea Guimarães

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  6. A fascinante percepção da beleza da existência.

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  7. Pingback: Obrigado por tudo, doutor* – Luiz Carlos Fabrini Filho

  8. A arte de ensinar inclusive , no momento especial da vida .. A despedida é algo que diferencia poucos . Ainda temos muito que aprender e aceitar com leveza , partidas de alguém q amamos . Obrigada por compartilhar essa bela história .

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  9. Dr. Lucas: muito mais que um médico perfeito. Um anjo. Obrigado. Deus o abençoe.

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