
No início deste mês foi publicado um artigo de Jordan Rosenfeld, no site http://theamateursguide.com, intitulado “As 11 qualidades de uma boa morte, de acordo com as pesquisas”. O texto básico, livremente traduzido, dizia o seguinte:
________________________________________________________________________
“Cerca de 9 anos atrás, recebi o telefonema de minha mãe adotiva me convocando para comparecer à casa da minha avó. Aos 92 anos de idade, ela já tinha perdido a maior parte da visão e audição e, com isso, o prazer que ela tinha em ler e escutar músicas. Ela passava a maior parte do seu tempo numa cadeira de rodas porque pequenos derrames cerebrais a tinham tornado propensa a quedas, e ela nunca ficava muito confortável na cama. Agora ela tinha dito à sua cuidadora que ela estava “pronta para morrer”, e nossa família acreditou que era exatamente o que ela queria dizer.
Eu cheguei a tempo de passar um dia inteiro ao lado de sua cama, junto com outros membros da família. Nós lhe dissemos que ela estava livre para partir, e ela se foi tranquilamente naquela noite. Aquilo foi, eu acredito, uma boa morte. Mas, além dessa experiência, eu nunca tive muita noção do que seria ter paz no final da vida para outras pessoas.
Um estudo recente publicado no American Journal of Geriatric Psychiatry, no qual foram coletados dados de pacientes terminais, familiares e profissionais da saúde, buscou esclarecer o que seria uma boa morte. A revisão da literatura identificou 11 temas centrais associados a morrer bem, citados em 36 estudos:
- ter controle sobre o processo de morrer
- não sentir dor
- envolvimento com religião ou espiritualidade
- experiência emocional de bem-estar
- ter a sensação de missão cumprida ou legado
- poder escolher tratamentos de sua preferência
- ter dignidade no processo de morrer
- ter a presença da família e se despedir
- qualidade de vida durante o processo de morrer
- boa relação com os profissionais da saúde
- outros (como questões culturais específicas, ter animais de estimação por perto, custos com a saúde, etc.)
Identificando os fatores que tendem a estar associados a um processo tranquilo de morte, essa pesquisa tem o potencial de ajudar a nos prepararmos melhor para a partida daqueles a quem amamos – e para a nossa própria.”
________________________________________________________________________
Ao ler o artigo descrito acima, minha avó me veio à mente. Aos 99 anos, ela está hoje hospitalizada, em uma UTI de um grande hospital. Minha avó sempre foi incrivelmente ativa, de personalidade forte, e todos nós nos acostumamos a fazer as coisas do jeito dela. Há alguns anos, no entanto, ela passou por um câncer de mama e, logo depois, teve vários derrames cerebrais (AVCs), que a deixaram cada vez mais dependente. Minha avó perdeu boa parte da visão, da audição, da memória e da capacidade de se mover sozinha. Precisava de ajuda inclusive para se alimentar, ficando acamada ou sentada o tempo todo, e mostrando-se confusa e até agressiva em muitos momentos. Eu olhava para ela e tinha certeza de que, se ela pudesse escolher, não estaria levando aquela vida.
Há algumas semanas ela foi internada para tratamento de uma infecção urinária e, durante a hospitalização, apresentou um severo rebaixamento do nível de consciência, deixando de responder a qualquer estímulo. A equipe de emergência foi chamada pela enfermeira responsável e, conforme o protocolo do hospital, ela foi levada para a UTI e entubada. Provavelmente ela teve seu quarto AVC. Não recobrou a consciência até hoje, mesmo sem qualquer sedativo, e a equipe de saúde tentou várias vezes retirá-la do respirador artificial, sem sucesso. Minha avó não está mais ali. Ela já se foi. O que ficou foi seu corpinho frágil, ao qual não foi permitido descansar em paz.
Tenho pensado muito, todos esses dias, em como somos terríveis em nos preparar para esses momentos finais. Mesmo eu, com toda a formação acadêmica e experiências sem fim com pacientes terminais, não fui capaz de ter uma conversa clara com a equipe de saúde que estava cuidando da minha avó. Não me ocorreu, nem por um instante, que ela poderia ter uma intercorrência como essa e que seria importante que todos soubessem o que gostaríamos que fosse feito: respeitar seus momentos finais e deixá-la ir. Eu pensei apenas na infecção urinária, algo banal que provavelmente não mudaria nada na vida da minha avó. Inacreditável que nem sequer tenha me passado pela cabeça o fato de que ela já tem 99 anos, três AVCs prévios e uma qualidade de vida pra lá de indesejável. Simplesmente não fui capaz de lidar com isso a tempo. Nem eu, nem qualquer outra pessoa da família. Nem tampouco alguém da equipe de saúde. Estávamos tão acostumados a vê-la sair de situações difíceis que superestimamos sua longevidade. Mas o fato é que até os longevos chegam ao fim.
De todas as 11 qualidades de uma boa morte, talvez minha avó tenha tido acesso apenas à ausência de dor. Não pudemos oferecer a ela mais que isso. O que estamos esperando para realmente modificar nossa forma de lidar com a finitude? Por que não conseguimos nos embrenhar nesse desafio e vencê-lo de uma vez por todas, passando a tratar a morte como o que ela realmente é: parte da vida? Qual o motivo de não conseguirmos mudar de forma significativa nossos protocolos clínicos, que incluem entubações desnecessárias, terapias inúteis e procedimentos pouco vantajosos (ou até deletérios)? Por que não conseguimos nos comunicar melhor quando a morte nos ronda?
Eu não tenho essas respostas. Provavelmente não existem respostas únicas ou assertivas o suficiente. O fato é que, sentada aqui escrevendo sobre o quanto os dias finais da minha avó serão o oposto do que ela desejaria que fossem, meu coração se aperta, e sinto que há muito mais a fazer do que eu pensava. A começar por mim mesma.




Deixar mensagem para luis otavio fernandes ribeiro Cancelar resposta