No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

2 de dezembro de 2018
Ana Lucia Coradazzi

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As coisas que acontecem depois

Alguns anos atrás, um colega cirurgião me fez uma colocação um tanto inquietante. Estávamos conversando sobre as dificuldades de exercer a medicina, com tantos problemas de falta de estrutura, a remuneração muitas vezes inadequada, a expectativa de que médicos tenham poderes quase que divinos, entre outras coisas. Em certo momento, ele disse: “O que me faz seguir adiante é a gratidão dos meus pacientes. Vê-los seguir suas vidas, curados, cheios de novos projetos, e tão agradecidos pelo que fiz por eles, vale qualquer dificuldade”. Ele então fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras, e continuou: “Eu realmente não sei como você consegue fazer o que faz. Tantos pacientes que morrem, que não têm como te agradecer depois… deve ser desolador pra você.”

Tentei iniciar uma argumentação qualquer, mas alguém interrompeu a conversa, nos deixando nas reticências. Encontrei com meu colega várias vezes depois, mas nunca mais tocamos nesse assunto, e acabei até me esquecendo. Até o dia em que vi Fabiana* me esperando na porta do consultório, encostada na parede do corredor. Sua filha, Nina*, tinha falecido há duas semanas, aos 19 anos, por um sarcoma agressivo que tinha começado nas costelas e se espalhado para outros ossos, para o tórax e, finalmente, para o cérebro, não dando chances a ela. Tinham sido quase dois anos de quimioterapia, radioterapia, complicações e muitas limitações. Durante todo o tempo, eu presenciei uma relação que ia muito além de mãe e filha. Elas tinham uma admiração uma pela outra que me comovia. A parceria incondicional, o respeito pelos limites físicos e emocionais que se multiplicavam pelos caminhos de ambas, a paciência, o carinho. Eu tinha aprendido como elas funcionavam. Sabia o quanto eu podia falar quando as notícias eram ruins, e principalmente podia comemorar com elas quando conseguíamos um bom resultado.

Cerca de um mês antes, o desafio tinha sido assustador. Nina estava ótima, tolerando bem a quimioterapia e com sinais de melhora da falta de ar, quando teve uma convulsão grave em casa. Chegou ao Pronto-Socorro desacordada, não respondia a qualquer estímulo e com a pressão arterial nas alturas. Uma tomografia logo revelou o motivo: metástases cerebrais. E com um grande sangramento associado, com imensas chances de não conseguirmos evitar sequelas neurológicas graves mesmo com a realização de uma cirurgia. Fabiana se desesperou. Embora compreendesse que Nina não gostaria de viver com sequelas que a deixassem totalmente dependente, não conseguia conceber a ideia de que não fizéssemos algo para tentar. Foram horas muito duras para todos nós. Descartada a viabilidade da cirurgia, decidimos iniciar medidas clínicas que pudessem ajudá-la. Aos poucos, Nina foi melhorando. Abria os olhos, às vezes murmurava alguma coisa. Mais alguns dias e ela começou a responder perguntas simples, sorrindo devagar. Um dia, entrei no quarto e ela sorriu, o mesmo sorriso que a acompanhava nas consultas do ambulatório. Fabiana, incansável, não saía do lado dela. No rosto, ela tinha somente alívio. Nas palavras, ela contava como tinham sido aqueles dias tétricos, e seu desespero por sentir que ainda não era o momento da filha ir embora. A angústia de tentar fazer com que todos compreendessem isso, e o alento quando decidimos todos juntos o que seria feito, levando em conta a percepção dela.

Nina estava relativamente bem, quinze dias já tinham se passado desde aquele dia tenebroso do Pronto-Socorro. Era início da madrugada, e as duas estavam acordadas, em silêncio, no quarto escuro. Nina chamou pela mãe. Perguntou se ela ficaria ali, pediu que lhe desse a mão. Perguntou se poderia dormir. Algo na voz de Nina tocou o coração de Fabiana. Ela não conseguia mais dormir, e continuou ali ao lado, de mãos dadas com a filha. Algumas horas depois, Fabiana estranhou a respiração dela e chamou a enfermeira. Nina tinha partido. Assim, dormindo, sem desespero, sem sofrimento.

Fiquei sabendo no dia seguinte. Uma notícia que entristeceu minha alma. Eu pensava na vida da Fabiana dali para frente. No vazio, na tristeza, na dor. Tentei ligar para ela, mas não consegui. Numa oração, torci para que ela ficasse bem, que pudesse seguir em frente. Não tive mais notícias dela até aquele dia, em que ela surgiu no ambulatório. Sorriu ao me ver abrir a porta, começou a chorar. Apertei-a num grande abraço, com aquela vontade de pegar para mim pelo menos um pouquinho da sua dor. No meio do abraço, ela disse que tinha vindo agradecer. Pelo carinho, pelo respeito, por estar por perto, por entendê-las, e por permitir que Nina fosse embora do jeito que era pra ser. Disse que, apesar da tristeza, seu coração estava em paz, e que se sentia uma mulher de muita sorte por todas as bênçãos que tinha recebido em seu caminho. Chorei e sorri com ela, ali no meio do corredor, lembrando do jeito brincalhão da Nina e de tantas outras coisas boas que ela tinha deixado nas nossas lembranças.

Depois que ela foi embora, me veio à mente a colocação do meu colega, anos atrás. Eu jamais poderia explicar a ele, nem naquele momento e nem hoje, o quanto um agradecimento como o da Fabiana pode nos transformar, não apenas como médicos, mas também como pessoas. Eu não conseguiria explicar o valor da gratidão quando as coisas deram errado, quando o sofrimento foi imenso, quando a dor não cabia no peito. Mais que isso: eu não saberia quantificar o sentimento de saber que pude ajudar, mesmo quando a própria pessoa não pôde estar ali para agradecer.

Médicos podem receber de volta muito mais do que deram. Nem sempre conseguimos resolver as coisas, e às vezes nem mesmo podemos melhorá-las. Há situações em que nosso conhecimento médico vale quase nada, e tudo de que dispomos é nosso conhecimento humano. É precisamente nesses momentos em que não é preciso ouvir “Obrigado”. Muitas vezes, nem é preciso ouvir palavra nenhuma. Basta saber o quanto somos parte de algo muito maior que nós mesmos, e o quanto podemos ser instrumentos de alívio e amor na vida das pessoas. É esse o sentimento que realmente nos motiva, nos impulsiona, nos faz seguir adiante. Às vezes, basta estar lá.

 

*nomes fictícios para preservar a privacidade de ambas

11 comentários sobre “As coisas que acontecem depois

  1. Linda colocação… se todos os médicos tivesse essa delicadeza e sensibilidade, a vida seria mais leve e a morte , mais natural…
    Parabéns sempre, pelo trabalho maravilhoso e por escrever e nos deixar conhecer sua vivência de forma tão amorosa e bem relatada!!!
    Bjs

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  2. Sem dúvida. Esta é a MEDICINA. Nao que a tecnologia, a ciencia, devam ser deixadas de lado. Mas o agradecimento, mesmo nao explicitamente manifesto, é este que toca e acalenta o sentimento. Sou cirurgiao (gineco/obstetra) e, de certa maneira, ouvia que o psiquiatra nao resolve nada, o clinico dificulta, o cirurgiao resolve. Mas trabalhando com a sensibilidade da mulher aprendi que aí está a verdade, medicina como ARTE, aliada à ciencia, mas nao subordinada a ela. Tenhamos mais medicina como a aqui relatada.

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  3. Querida Ana Lúcia. Eu tenho resumido todas “historias” do Fim do corredor. Eu realmente transformei-me depois da leitura. E as Pancadas então . Vivo citando partes desta obra universal. Estou aguardando o próximo autografado , é lógico. Um grande abraço.

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  4. Não resisto seus textos. Sempre quero terminar de le-los. São lindos… humanos.

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  5. Me rendo aos seus textos. Admiro sua técnica e sua sensibilidade ao escrevê-los. O texto “Quando nada parece certo na sua vida” (dezembro 2017) arrancou-me lágrimas; parece ter sido escrito para mim, por todo o contexto e principalmente que, foi justamente ao estar me preparando para uma cirurgia estética que descobri um câncer. Graças à Deus, aos médicos maravilhosos que cruzaram meu caminho e aos recursos materiais, obtive sucesso no tratamento. Hoje faço manutenção. Parabéns e muito obrigada por nos proporcionar uma leitura sincera, respeitosa e humana. Paz e Bem!

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