No Final do Corredor

histórias, experiências e lições de vida

27 de julho de 2019
Ana Lucia Coradazzi

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Coragem

Na época em que conheci Sílvia*, ela tinha 36 anos. Fisioterapeuta, com uma saúde invejável, ela estava amamentando seu segundo filho, Caio, então com 6 meses. Quando começou a sentir um desconforto no abdome, achou que era algo relacionado à mudança da alimentação e não deu muita importância. Além disso, os cuidados com o bebê tão pequeno e mais toda a atenção que tinha que dar à filha mais velha (Manú, 4 anos) tornavam o agendamento de uma consulta com o médico uma verdadeira empreitada. Mas o desconforto aumentou, tornou-se doloroso, e o funcionamento intestinal passou a ser mais difícil que o habitual. Sílvia não teve mais como adiar, e marcou uma consulta com um gastroenterologista. Os exames de investigação logo mostraram um tumor intestinal, e ela foi rapidamente encaminhada a um cirurgião. A cirurgia foi marcada em poucos dias e Sílvia teve ótima recuperação, recebendo alta dois dias após (para alegria da Manú e do Caio).

Mais alguns dias se passaram até o retorno com o cirurgião para retirada dos pontos, quando o colega a encaminhou aos meus cuidados para complementar o tratamento com quimioterapia. Quando passei pela sala de espera, antes de consultá-la, Sílvia já me chamou a atenção. Estava acompanhada do marido, os dois abraçados e com o Caio no colo, encantados com o bebê. Ela estava tão bem que eu nem imaginava que era ela a minha paciente nova. Mal acreditei quando li o encaminhamento do cirurgião. Ele descrevia uma verdadeira catástrofe: a lesão intestinal era tão avançada que não tinha sido possível removê-la, e a tomografia revelava inúmeros nódulos metastáticos no fígado dela (o que significava um prognóstico bastante desanimador). Tudo o que tinha sido feito durante a cirurgia era uma biopsia das lesões do fígado. Senti meu coração acelerando, e confesso que tive uma tremenda vontade de ir embora sem vê-la. Mas é justamente nessas horas que alguma força maior deve agir sobre os médicos e os impede de seguir seus impulsos… respirei bem fundo, pedi ajuda divina e chamei Sílvia na sala de espera.

Ela e o marido entraram sorrindo, me apresentaram ao Caio e começaram a me contar a sua versão da história. Sílvia falou sobre o desconforto no abdome, sobre as evacuações mais difíceis (e que ainda não tinham melhorado, mesmo após a cirurgia) e sobre a perda de peso recente. Contou que se sentia sem apetite, mas que achava isso normal por causa da cirurgia recente. Quando perguntei o que o cirurgião tinha lhe explicado, ela foi bastante clara: “Ele disse que era um câncer no intestino, que estava grande e por isso a cirurgia tinha sido difícil, e que eu estou com alguns pequenos nódulos no fígado que ele vai deixar para operar depois da quimioterapia, quando também vamos colocar a bolsinha da colostomia para dentro. Assim eu me recuperarei mais facilmente.” Olhei para ela sem saber que reação expressar.

Sílvia não tinha ideia da gravidade da situação. Talvez não tivesse compreendido bem o que tinha sido explicado, ou simplesmente não quisesse acreditar. Mas ela parecia tão tranquila, não havia nenhum sinal de dúvida em sua voz. O marido, André, confirmou a versão dela, e ficou claro que o colega cirurgião tinha dado a entender que tudo estava realmente indo bem. Infelizmente, esse tipo de situação não é tão infrequente assim. Diante de situações muito graves, principalmente em pacientes muito jovens (e especialmente quando há filhos pequenos envolvidos), médicos muitas vezes recuam. É difícil resistir à tentação de usar termos que permitam uma dupla interpretação, como “a cirurgia correu bem” ou “minha parte está terminada, agora é só fazer a quimioterapia”. Olhando os dois sentados à minha frente, com o bebê aconchegado em seus braços, tive a mesma vontade do colega. De verdade. Por muito pouco não segui o mesmo caminho, abrindo um largo sorriso e confirmando que a quimioterapia complementaria o tratamento, resultando na cura da doença. Mas há algum tempo eu tinha aprendido que esse tipo de mentira caridosa, embora adie o sofrimento, pode multiplicá-lo (muitas vezes) no futuro. É impossível esconder a gravidade de uma doença como um câncer tão avançado por muito tempo. A dor, a falta de apetite, a perda de peso e tantos outros sintomas que podem acompanhar a evolução do quadro acabam por denunciar a mentira, dando espaço a uma tremenda sensação de solidão, de não se ter em quem confiar. Além disso, não é justo. Não é justo privar o paciente de decidir como quer viver sua vida. Não é justo iludí-lo a ponto de impedir que ele tome decisões importantes, que priorize o que realmente tem valor em sua vida, que invista seu tempo no que realmente faz sentido para ele. Lembrei de uma frase que sempre me acompanha nesses momentos: “É preciso ter coragem para começar uma conversa que realmente valha a pena.” E comecei a falar.

Expliquei o que vi nos exames. Mostrei as tomografias. Traduzi as explicações dadas pelo cirurgião. Voltei para os exames, correlacionando cada achado aos sintomas que Sílvia vinha apresentando. Cada informação me doía nos lábios. Cada palavra era escolhida com cuidado, para cada má notícia havia um intervalo em silêncio. Eu podia sentir a tensão crescente dos dois, tentando absorver tudo aquilo e criar um plano de emergência. Suas poucas perguntas giravam em torno da sua incredulidade: “Mas o médico não disse nada disso… você tem certeza? Por que ele não me falou nada?” Num determinado momento, achei que tínhamos chegado ao limite. Eu já tinha exposto todos os pontos importantes relacionados à extensão da doença, e ainda não tinha começado a falar sobre o tratamento, mas Sílvia estava tão transtornada que eu não via como continuar. Ela chorava, abraçada ao bebê e ao marido. Me levantei da cadeira e fui me sentar ao lado dela. Sugeri que conversássemos sobre o tratamento num outro momento, para que ela tivesse tempo para digerir tudo o que tínhamos conversado. Combinamos que eles voltariam em dois dias e me despedi. Fechei a porta e comecei a chorar. Coragem é muito pouco para se ter uma conversa dessas. É preciso bem mais que isso…

Os dois dias se passaram, Sílvia e André vieram para nossa nova conversa. Embora ainda um pouco tensos, não havia neles nem sombra de desespero ou frustração. Logo no início da consulta me mostraram sua lista de perguntas, feita depois de uma longa busca pela internet, e fomos esclarecendo todos os pontos juntos, destrinchando os detalhes do tratamento, os efeitos colaterais, as possibilidades de melhora. Sílvia tinha um outro olhar nesse dia, um olhar que reconheço de longe. Era o olhar das mães que decidem lutar em nome dos filhos. Ela sabia o quanto Caio e Manú precisavam dela, sabia que não tinha o direito de fraquejar. Não chorou em nenhum momento. Não desviava o olhar, sua voz não tremia. E, mesmo assim, ela mantinha sua doçura, exatamente como as mães sabem fazer. A coragem, nesse dia, era toda dela.

Foi um longo caminho juntas, quase quatro anos de tratamento. Sílvia melhorou muito com a quimioterapia. As lesões do fígado reduziram em mais de 80%, a lesão do intestino também. Ela se sentia muito melhor, conseguia manter muitas de suas atividades. Mas, com o decorrer do tempo, sempre havia uma recaída, uma mudança no tratamento, um novo rumo a ser tomado. Ela estava quase sempre animada e confiante. Buscava tratamentos alternativos, mantinha atividades físicas sempre que conseguia, e fazia questão de tomar as rédeas do tratamento, participando de todas as decisões. Cerca de dois anos após o diagnóstico, ela estava num momento particularmente bom. A doença estava estabilizada há um bom tempo, ela se sentia muito bem, e revelou seu imenso desejo de uma nova cirurgia para fechar a colostomia. A bolsinha a impedia de entrar na piscina com as crianças, e a constrangia no dia-a-dia. Marcou uma nova consulta com o cirurgião (outro) e, apesar das controvérsias de uma estratégia como essa, decidiu correr o risco em nome de ter uma vida mais digna. A cirurgia foi ótima, o tumor intestinal foi ressecado e a bolsinha retirada. Poucas vezes vi Sílvia tão feliz! Mas seus momentos de medo e angústia nunca deixaram de existir. Alguns dias, principalmente quando André não a acompanhava, ela expunha seu receio quanto ao futuro das crianças. Disse que, às vezes, acordava à noite e ia espiá-las dormindo, tentando se convencer de que ficariam bem se ela não estivesse lá. Ãs vezes ela chorava, pedia que eu não a deixasse sozinha, e dizia que tinha muito medo de deixar a família. Eram conversas dolorosas para nós duas. Em algumas delas chorei também. Mas Sílvia sempre se recuperava, juntava forças e terminava nossas conversas com sua frase preferida: “Dá tudo certo, até quando não dá certo.”

Algum tempo depois que Sílvia faleceu, André veio me procurar. Contou que ela tinha organizado toda a vida das crianças até a adolescência. Tinha deixado algumas cartas para os dois, combinado com a família sobre como gostaria que eles crescessem e até mesmo feito um planejamento financeiro para isso. Falou sobre os momentos difíceis no final, quando ela já não era capaz de sair da cama ou mesmo falar, e de como era imenso o vazio que ela tinha deixado. Agradeceu o apoio de todos aqueles anos, e disse tantas coisas bonitas sobre a Sílvia que seria impossível descrever. Mas uma das coisas de que mais me lembro foi quando ele agradeceu por aquela primeira conversa que tivemos, quatro anos antes. André contou o quanto tinha sido difícil sair do consultório aquele dia. Falou sobre as pernas bambas, a boca seca, a sensação de atordoação, como se o ar lhes faltasse. E, ainda assim, se lembrava daquele dia com um grande alívio. Foi a partir dali que se estabeleceu a relação de confiança que permeou cada momento da nossa história juntos, e que ditou a forma como Sílvia passou a conduzir sua vida. Meu alívio, ao ouví-lo, foi ainda maior.

Ainda hoje lembro deles com frequência. Penso na imensa responsabilidade que temos na construção de uma relação de parceria com os pacientes e com as famílias. Penso no quanto é preciso aprender sobre a melhor forma de nos comunicarmos, sobre as reações humanas, e sobre como lidarmos com elas. Quanto de nós deixamos nos pacientes? Mais importante ainda: quanto deles fica em nós? É impossível mensurar algo tão delicado quanto a troca de “humanidades” entre as pessoas, mas nem tudo precisa ser medido. Tem coisas que precisam apenas ser percebidas, exatamente como a brisa no rosto ou o calor do sol. Exatamente como os laços sagrados de confiança que se estabelecem entre as pessoas, particularmente entre aquelas que têm coragem suficiente para isso.

*o nome da paciente e dos familiares foi alterado para preservar sua privacidade, bem como alguns dados de sua história

 

 

8 comentários sobre “Coragem

  1. Emoção em meio a lágrimas e lembranças!!!
    Jamais me esquecerei de como seu o diagnóstico para minha filha…pode ter certeza que oque deixou em nós naquele momento permanece Vivo até hoje em nossos corações….te adoro

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  2. Emoção em meio a lágrimas e lembranças!!!
    Jamais me esquecerei de como deu o diagnóstico para minha filha…pode ter certeza que oque deixou em nós naquele momento permanece Vivo até hoje em nossos corações….te adoro

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  3. Doutora, não a conheço pessoalmente mas você tem minha admiração pela sensibilidade que nos toca a alma. Embora nunca nos tenhamos encontrado, a vi na pessoa do Dr. Carlos Sampaio, oncologista sediado em Salvador (Clínica AMO) que, no tratamento de meu amado marido, demonstrou tudo aquilo com que me deparo nas suas crônicas. Até hoje, 18 anos depois da partida de meu esposo, ainda choro de emoção quando me lembro da pessoa do médico que o assistiu e oro para que profissionais como você e o dr. Carlos Sampaio continuem aplicando, junto com a medicação, todo o amor que se precisa em momentos adversos. Obrigada.

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  4. Dra. Ana bom dia,
    Meu nome é Cynthia Goes, e sempre leio seus textos. São inspiradores…
    Também escrevo e publico vídeos em meu face, Instagram e meu canal no youtube, direcionado a mulheres que vivenciam ou vivenciaram o câncer de mama ou outros do universo feminino. Gostaria de pedir licença para compartilhar essa história (Coragem) com meu público, citando seu nome e o blog No Final do Corredor. Pois, acredito que sua reflexão irá ajudar muito, no amadurecimento, na forma de ver e enxergar as coisas, tanto para as pacientes que me seguem e principalmente os profissionais de saúde.
    Todo o meu respeito e admiração pelo seu trabalho.
    Um grande abraço,
    Cynthia Goes

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  5. Parabéns Dra,muitas vezes encontramos apenas o profissional, mais a Sra é humana, humilde, Deus abençoe grandemente a vida da senhora, conheci a paciente,menina linda, que Deus a tenha!!!

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  6. Vc é um ser iluminado mesmo.!!! Feliz dos q tem a sorte de cruzar o seu caminho.

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