Um amigo está passando por momentos doloridos: seu irmão está vivendo talvez os últimos dias numa cama de hospital. Mas a tristeza de meu amigo e da família é acrescida pela insensibilidade arrogante do médico que cuida do seu irmão. Meu amigo quer ver o resultado dos exames de laboratório. Eu também quereria. Pois o dito médico determinou que somente ele, médico, pode ter acesso aos exames. A família permanece na ignorância. Esse é um dos horrores possíveis no caso de uma internação hospitalar: a perda dos direitos sobre o próprio corpo. Fica-se à mercê de um outro, desconhecido. Infelizmente ainda há médicos que, possuídos de arrogância e onipotência, se julgam donos do doente. Pois eu acho que quem é o dono é o doente, dono dos procedimentos médicos que ele pode aceitar ou rejeitar, dono das informações que ele passa ao médico, se assim o desejar. Essa é uma questão muito séria e julgo que os médicos deveriam estudá-la, como parte da ética médica. O doente, por ser doente, não está reduzido à condição de um nabo cozido. Ele continua a ser um ser humano, dono de si mesmo. E se ele não está em condições, são os seus seres queridos que administram seus direitos e cuidam para que eles não sejam transgredidos. Um comportamento assim seria objeto de punição se acontecesse em qualquer outra situação. Até os criminosos são protegidos pela lei. Imagino que Kafka deve ter se inspirado numa situação hospitalar para escrever O julgamento. É preciso que os médicos estejam conscientes de que não são donos do doente, mas servos do doente. Uma das condições essenciais para o exercício da medicina é a humildade. Comportamentos como esse que denuncio não são a regra. Mas existem. Por isso a classe médica tem que estar atenta. Os médicos não estão imunes à deformação de caráter.
*texto extraído do livro “Do Universo à Jabuticaba”, de Rubem Alves
8 de janeiro de 2016 às 17:55
Amei “O doente, por ser doente, não está reduzido à condição de um nabo cozido. “
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9 de janeiro de 2016 às 18:14
Também adorei a frase, Fri! Traduz exatamente o desprezo que alguns pacientes têm que enfrentar nos momentos de fragilidade.
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